João Pedro Henriques e João Rui Guerra da Mata
Santo António, Mimesis Art Museum, Coreia do Sul
Santo António de João Pedro Rodrigues |
ESTAR E NÃO ESTAR
PARA JOÃO PEDRO RODRIGUES
Uma figura moldada por um
tecido sintético negro move-se com uma determinação cujo desígnio ou destino não
conseguimos adivinhar sobre uma extensa paisagem de detritos noturnos. Esta é
uma descrição simples de uma das últimas sequências de “O Fantasma”
(2000), primeira longa-metragem de João Pedro Rodrigues, que desde logo o
estabeleceu como um dos autores mais significativos e originais da sua geração.
Quem quisesse evocar
referências poderia falar de uma combinação peculiar entre ecos de Bresson e de
Pasolini, tornada inconfundível por uma forma única de olhar (enquadrar) e por
uma forma também única, e radical, (ambas se mantêm até hoje) de trabalhar o
desenho das personagens e dos corpos até ao limite da exploração das suas
possibilidades ou das suas impossibilidades (físicas e/ou ficcionais). Mais
exatamente trata-se de trabalhar sobre a linha de delimitação (e os problemas
da inviabilidade da sua rigorosa definição) entre as possibilidades e
impossibilidades dos corpos. Por isso, a questão das metamorfoses dos corpos
assume um papel preponderante que se torna ainda mais explícito nas duas
longas-metragens seguintes “Odete” (2005) e “Morrer como um homem” (2009). As
metamorfoses incluem, na sua expressão mais evidente, o uso de diferentes tipos
de adereços (associáveis, por exemplo, às práticas s/m, fetish ou drag) ou a
modelação pelo body-building dos corpos filmados na recente curta-metragem “O
corpo de Afonso” (2013). No entanto, as expressões mais relevantes desta lógica
da metamorfose consistem sobretudo na elaboração de surpreendentes e complexas
formas de relacionamento e transmutação entre mortos e vivos ou entre homens e
mulheres (incluindo o tema da transexualidade). O potencial metamórfico dos
seres (físicos ou ficcionais) inclui ainda as relações entre seres humanos e
animais que - desde a primeira curta-metragem “Parabéns” (1997) - é fundamental
no trabalho do autor, incluindo esta instalação em que, entre os seres vivos, só
os animais, nas suas breves aparições, sugerem a presença de uma vitalidade que
se costuma considerar exclusiva dos humanos. Para além dos animais, as presenças
mais vivas são as dos anúncios publicitários rotativos e as dos automóveis.
Com a instalação “Santo
António”, realizada especialmente para o Mimesis Art Museum, a partir de imagens
registadas durante a rodagem da curta-metragem “Manhã de Santo António” (2012),
João Pedro Rodrigues, depois de consagrado no mundo do cinema, faz a sua
primeira intervenção no chamado mundo das artes plásticas. Este movimento biunívoco
entre o mundo do cinema (festivais e salas de cinema) e o mundo das artes plásticas
(museus e salas de exposição) tem adquirido um significado preponderante na
conjuntura artística das últimas décadas envolvendo nomes tão significativos
quanto Apichatpong Weerasethakul, Chantal Akerman, Douglas Gordon, Eija-Liisa
Ahtila, Isaac Julien, Matthew Barney, Pedro Costa ou Yang Fudong. Das
galerias para as salas de cinema ou dos festivais de cinema para os museus
estes são exemplos muito diversificados de um trânsito cada vez mais fluído que
leva muitos artistas hoje em dia a trabalhar já de forma ddireccionadae
diferenciada para os dois circuitos. Estes trânsitos são feitos dos modos mais
variados e não cabe aqui sugerir uma tipologia nem fazer comparações com João
Pedro Rodrigues até porque se trata do seu primeiro trabalho neste contexto.
Consideramos que a forma
encontrada para esta instalação, que nos situa no interior de um cubo cujos 4
lados são totalmente ocupados por 4 imagens, é particularmente feliz e adequada
à valorização de dois aspetos fundamentais relacionados com a concepção espacial
desta narrativa. Neste filme (tal como no filme que lhe deu origem) há dois
tipos de espaços : um espaço quadrado, potencialmente fechado, que é desenhado
pela malha urbana de prédios e escadas e tem a sua expressão mais acabada na
praça quadrada dominada pela estátua do Santo ; e um espaço vectorial unidirecional, abstracto e indeterminado, que não se confunde nem com as ruas
nem com as irrupções da natureza (veja-se como uma personagem atravessa as próprias
árvores) e que é o espaço desenhado pela deslocação das personagens segundo uma
lógica e um horizonte que, mais uma vez, não podemos adivinhar.
A montagem (na dupla acepção
de editing e instalação) das imagens no interior de um cubo permite, em simultâneo,
instaurar uma situação claustrofóbica (em que estamos rodeados por diferentes
fragmentos de um mesmo espaço) e uma dinâmica de fuga interminável, porque as
deslocações das personagens deslizam de um ecran para o outro, de um lado para
o outro, traçando um movimento sem princípio nem fim, apesar dos limites físicos
do local onde nos encontramos.
Voltando ao início
arriscaria dizer que este filme começa onde acaba “O Fantasma”. Para além do
raccord entre as figuras compare-se a frase que acompanhou a divulgação de “O
Fantasma” – “Não se pode viver sem amor” - com a quadra de Fernando Pessoa
evocada nesta instalação “ ... “.
Importa reconhecer,
entretanto, que esta obra surge muito tempo depois e muitos corpos
depois. Muito tempo depois, no que diz respeito ao tempo das transformações
sociais, culturais e comunicacionais, designadamente o advento do tempo das vãs
glórias digitais. Muitos corpos depois, no sentido de uma progressiva exaustão
das possibilidades de uma produtividade física ou narrativa (produção de imaginário)
auto-sustentada pelo próprio corpo.
A narrativa do filme
percorre um arco muito rápido e muito tenso (embora o olhar e os enquadramentos
ultra-rigorosos o façam parecer frio e suave) entre a banalidade urbana e
quotidiana de uma circunstância típica da cidade de Lisboa (junto à Praça de
Alvalade, onde se encontra a estátua de Santo António, um grupo de jovens
regressa das comemorações da festa popular da noite de Santo António) e a
absoluta indeterminação da situação ontológica ou metafísica destes
jovens seres que se movem numa direcção cujo sentido nos escapa.
Eles têm ainda os
atributos físicos dos corpos humanos (urinam, vomitam, um tem manchas de
sangue?) na camiseta, alguns estão semi-despidos, permitindo admitir alguma prévia
actividade física) mas não falam e não nos é concedido acesso aos seus rostos ou
olhares (será que foram apagados como nalguns filmes de terror particularmente
aflitivos?). Caem, levantam-se e continuam caídos. Adormecem e continuam
acordados, acordam e continuam a dormir. Parecem, por vezes, como é o caso da
protagonista, ser guiados por telemóveis que nunca abandonam mesmo que o
caminho conduza ao afogamento. Este pormenor não parece ser muito importante.
Talvez no universo digital em que pequenitas máquinas ( e só nelas a custo se vê
o reflexo de um rosto) conduzem os homens a questão da morte tenha outros
contornos. Talvez estas personagens sejam já seres ressuscitados, uma espécie
de zombies que a saciedade tornou inofensivos, ou objectos de uma intervenção
para-psicológica extra-terrestre cujo objectivo não nos foi revelado. Ou talvez
sejam apenas pessoas normais, pessoas como nós (admitindo que nós somos pessoas
normais, o que é pouco provável), e estejam apenas mais ou menos ressacados.
Continuam a andar não se sabe bem porquê nem para onde e cada um de nós é livre
de os seguir ou não.
(Agora, entre parêntesis,
surgem algumas imagens que me disseram terem sido filmadas em Acapulco. Mas, na
verdade, de facto, de onde vêm estas imagens? De um improvável continente a
que outrora nos habituáramos a chamar realidade ? Ou serão talvez, apenas (?),
imagens interiores de um pensamento?)
O único néon de imagens
no interior de um cubo permite em simultâneo que as mãos façam parecer frio. O único ponto de vista está atrás dos nossos olhos
e é o ponto de vista de uma câmara. A câmara de João Pedro Rodrigues. O olhar
do Santo, no final, é um olhar cego e mudo que não nos traz a salvação. Ou será
esta a salvação?
Santo António de João Rui Guerra da Mata |
BONECOS
PARA JOÃO RUI GUERRA DA MATA
O conjunto de desenhos de João Rui
Guerra da Mata apresentado em paralelo à instalação “Santo António”, de João
Pedro Rodrigues, permite desenvolver algumas reflexões sobre a natureza das
respectivas estratégias de figuração. Designamos por estratégias de figuração o
conjunto de processos através dos quais um determinado modo de olhar para os
corpos e avaliar o modo como os corpos se põem e movem no mundo, dá lugar a uma
determinada forma de apresentação ou representação desses mesmos corpos.
Sabemos e poderíamos adivinhar que os
desenhos de JRGM – uma pequena selecção de um vasto conjunto de trabalhos do
mesmo tipo que vem realizando desde 1985 - partem de um determinado modo,
pessoal, de olhar e avaliar corpos, designadamente, neste caso, alguns dos
corpos dos actores e outros colaboradores envolvidos na produção do filme “Manhã
de Santo António” que esteve na origem da instalação “Santo António”. A
observação dá lugar, na maioria dos casos, a fotografias que servem de ponto de
partida para um trabalho de transformação das figuras, sobretudo rostos ou, por
vezes, torsos.
O processo passa por diferentes fases
que, no essencial, correspondem a sucessivas etapas de um processo de
eliminação de informação específica particularizadora, no sentido psicológico,
da pessoa em causa, e de subsequente valorização de determinados traços (também no sentido gráfico literal da palavra) da sua fisionomia e postura : e
não, de modo algum, da sua expressão, já que se trata, antes de mais, de banir
a expressão.
Se o ponto de partida da relação com
o corpo representado é a fotografia (por vezes associada aos métodos próprios
do trabalho de casting), já o tipo de traços retidos e o tipo de linha que os
configura poderiam ser relacionados, na sua origem, com alguns exemplos
consagrados da BD francesa e belga, ou, nalguns aspetos mais particulares, com
a BD e a animação japonesas.
O resultado final, apesar de se
tratar de um trabalho totalmente feito à mão, tem pontos de contacto com formas
de figuração gráfica e digital que hoje se multiplicam nos écrans das
pequenitas máquinas sem as quais tantas jovens criaturas parecem não saber o
que fazer nem com as mãos nem com os olhos.
... e no entanto, mesmo sem alma
(como se diz ser próprio de alguns animais) e sem carne (como é próprio das
imagens) a existência de corpos (ou uma espécie de pré-existência de corpos) é
sinalizada pelas linhas que lhes designam pontos de consistência e pelos traços
que lhes apontam vetores de deslocação que, quem sabe, um dia, ascenderão ao
estatuto de vocações.
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Texto realizado por ocasião da exposição 'Santo António' de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, no Mimesis Art Museum, na Coreia do Sul, inaugurada em Novembro 2013.
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