ESTAR E NÃO ESTAR / BONECOS




João Pedro Henriques e João Rui Guerra da Mata
Santo António, Mimesis Art Museum, Coreia do Sul


Santo António de João Pedro Rodrigues

ESTAR E NÃO ESTAR
PARA JOÃO PEDRO RODRIGUES

Uma figura moldada por um tecido sintético negro move-se com uma determinação cujo desígnio ou destino não conseguimos adivinhar sobre uma extensa paisagem de detritos noturnos. Esta é uma descrição simples de  uma das últimas sequências de “O Fantasma” (2000), primeira longa-metragem de João Pedro Rodrigues, que desde logo o estabeleceu como um dos autores mais significativos e originais da sua geração.  
Quem quisesse evocar referências poderia falar de uma combinação peculiar entre ecos de Bresson e de Pasolini, tornada inconfundível por uma forma única de olhar (enquadrar) e por uma forma também única, e radical, (ambas se mantêm até hoje) de trabalhar o desenho das personagens e dos corpos até ao limite da exploração das suas possibilidades ou das suas impossibilidades (físicas e/ou ficcionais). Mais exatamente trata-se de trabalhar sobre a linha de delimitação (e os problemas da inviabilidade da sua rigorosa definição) entre as possibilidades e impossibilidades dos corpos. Por isso, a questão das metamorfoses dos corpos assume um papel preponderante que se torna ainda mais explícito nas duas longas-metragens seguintes “Odete” (2005) e “Morrer como um homem” (2009). As metamorfoses incluem, na sua expressão mais evidente, o uso de diferentes tipos de adereços (associáveis, por exemplo, às práticas s/m, fetish ou drag) ou a modelação pelo body-building dos corpos filmados na recente curta-metragem “O corpo de Afonso” (2013). No entanto, as expressões mais relevantes desta lógica da metamorfose consistem sobretudo na elaboração de surpreendentes e complexas formas de relacionamento e transmutação entre mortos e vivos ou entre homens e mulheres (incluindo o tema da transexualidade). O potencial metamórfico dos seres (físicos ou ficcionais) inclui ainda as relações entre seres humanos e animais que - desde a primeira curta-metragem “Parabéns” (1997) - é fundamental no trabalho do autor, incluindo esta instalação em que, entre os seres vivos, só os animais, nas suas breves aparições, sugerem a presença de uma vitalidade que se costuma considerar exclusiva dos humanos. Para além dos animais, as presenças mais vivas são as dos anúncios publicitários rotativos e as dos automóveis.

Com a instalação “Santo António”, realizada especialmente para o Mimesis Art Museum, a partir  de imagens registadas durante a rodagem da curta-metragem “Manhã de Santo António” (2012), João Pedro Rodrigues, depois de consagrado no mundo do cinema, faz a sua primeira intervenção no chamado mundo das artes plásticas. Este movimento biunívoco entre o mundo do cinema (festivais e salas de cinema) e o mundo das artes plásticas (museus e salas de exposição) tem adquirido um significado preponderante na conjuntura artística das últimas décadas envolvendo nomes tão significativos quanto Apichatpong Weerasethakul, Chantal Akerman, Douglas Gordon, Eija-Liisa Ahtila, Isaac Julien, Matthew Barney, Pedro Costa ou Yang Fudong.  Das galerias para as salas de cinema ou dos festivais de cinema para os museus estes são exemplos muito diversificados de um trânsito cada vez mais fluído que leva muitos artistas hoje em dia a trabalhar já de forma ddireccionadae diferenciada para os dois circuitos. Estes trânsitos são feitos dos modos mais variados e não cabe aqui sugerir uma tipologia nem fazer comparações com João Pedro Rodrigues até porque se trata do seu primeiro trabalho neste contexto.

Consideramos que a forma encontrada para esta instalação, que nos situa no interior de um cubo cujos 4 lados são totalmente ocupados por 4 imagens, é particularmente feliz e adequada à valorização de dois aspetos fundamentais relacionados com a concepção espacial desta narrativa. Neste filme (tal como no filme que lhe deu origem) há dois tipos de espaços : um espaço quadrado, potencialmente fechado, que é desenhado pela malha urbana de prédios e escadas e tem a sua expressão mais acabada na praça quadrada dominada pela estátua do Santo ; e um espaço vectorial unidirecional, abstracto e indeterminado, que não se confunde nem com as ruas nem com as irrupções da natureza (veja-se como uma personagem atravessa as próprias árvores) e que é o espaço desenhado pela deslocação das personagens segundo uma lógica e um horizonte que, mais uma vez, não podemos adivinhar.
A montagem (na dupla acepção de editing e instalação) das imagens no interior de um cubo permite, em simultâneo, instaurar uma situação claustrofóbica (em que estamos rodeados por diferentes fragmentos de um mesmo espaço) e uma dinâmica de fuga interminável, porque as deslocações das personagens deslizam de um ecran para o outro, de um lado para o outro, traçando um movimento sem princípio nem fim, apesar dos limites físicos do local onde nos encontramos.

Voltando ao início arriscaria dizer que este filme começa onde acaba “O Fantasma”. Para além do raccord entre as figuras compare-se a frase que acompanhou a divulgação de “O Fantasma” – “Não se pode viver sem amor” - com a quadra de Fernando Pessoa evocada  nesta instalação “ ... “.
Importa reconhecer, entretanto, que  esta obra surge muito tempo depois e muitos corpos depois. Muito tempo depois, no que diz respeito ao tempo das transformações sociais, culturais e comunicacionais, designadamente o advento do tempo das vãs glórias digitais. Muitos corpos depois, no sentido de uma progressiva exaustão das possibilidades de uma produtividade física ou narrativa (produção de imaginário) auto-sustentada pelo próprio corpo.
A narrativa do filme percorre um arco muito rápido e muito tenso (embora o olhar e os enquadramentos ultra-rigorosos o façam parecer frio e suave) entre a banalidade urbana e quotidiana de uma circunstância típica da cidade de Lisboa (junto à Praça de Alvalade, onde se encontra a estátua de Santo António, um grupo de jovens regressa das comemorações da festa popular da noite de Santo António) e a absoluta indeterminação da situação ontológica ou metafísica destes jovens seres que se movem numa direcção cujo sentido nos escapa.  
Eles têm ainda os atributos físicos dos corpos humanos (urinam, vomitam, um tem manchas de sangue?) na camiseta, alguns estão semi-despidos, permitindo admitir alguma prévia actividade física) mas não falam e não nos é concedido acesso aos seus rostos ou olhares (será que foram apagados como nalguns filmes de terror particularmente aflitivos?). Caem, levantam-se e continuam caídos. Adormecem e continuam acordados, acordam e continuam a dormir. Parecem, por vezes, como é o caso da protagonista, ser guiados por telemóveis que nunca abandonam mesmo que o caminho conduza ao afogamento. Este pormenor não parece ser muito importante. Talvez no universo digital em que pequenitas máquinas ( e só nelas a custo se vê o reflexo de um rosto) conduzem os homens a questão da morte tenha outros contornos. Talvez estas personagens sejam já seres ressuscitados, uma espécie de zombies que a saciedade tornou inofensivos, ou objectos de uma intervenção para-psicológica extra-terrestre cujo objectivo não nos foi revelado. Ou talvez sejam apenas pessoas normais, pessoas como nós (admitindo que nós somos pessoas normais, o que é pouco provável), e estejam apenas mais ou menos ressacados. Continuam a andar não se sabe bem porquê nem para onde e cada um de nós é livre de os seguir ou não.

(Agora, entre parêntesis, surgem algumas imagens que me disseram terem sido filmadas em Acapulco. Mas, na verdade, de facto, de onde vêm estas imagens? De um improvável continente a que outrora nos habituáramos a chamar realidade ? Ou serão talvez, apenas (?), imagens interiores de um pensamento?)

O único néon de imagens no interior de um cubo permite em simultâneo que as mãos façam parecer frio. O único ponto de vista está atrás dos nossos olhos e é o ponto de vista de uma câmara. A câmara de João Pedro Rodrigues. O olhar do Santo, no final, é um olhar cego e mudo que não nos traz a salvação. Ou será esta a salvação?

Santo António de João Rui Guerra da Mata


BONECOS
PARA JOÃO RUI GUERRA DA MATA

O conjunto de desenhos de João Rui Guerra da Mata apresentado em paralelo à instalação “Santo António”, de João Pedro Rodrigues, permite desenvolver algumas reflexões sobre a natureza das respectivas estratégias de figuração. Designamos por estratégias de figuração o conjunto de processos através dos quais um determinado modo de olhar para os corpos e avaliar o modo como os corpos se põem e movem no mundo, dá lugar a uma determinada forma de apresentação ou representação desses mesmos corpos.
Sabemos e poderíamos adivinhar que os desenhos de JRGM – uma pequena selecção de um vasto conjunto de trabalhos do mesmo tipo que vem realizando desde 1985 - partem de um determinado modo, pessoal, de olhar e avaliar corpos, designadamente, neste caso, alguns dos corpos dos actores e outros colaboradores envolvidos na produção do filme “Manhã de Santo António” que esteve na origem da instalação “Santo António”. A observação dá lugar, na maioria dos casos, a fotografias que servem de ponto de partida para um trabalho de transformação das figuras, sobretudo rostos ou, por vezes, torsos.
O processo passa por diferentes fases que, no essencial, correspondem a sucessivas etapas de um processo de eliminação de informação específica particularizadora, no sentido psicológico, da pessoa em causa,  e de subsequente valorização de determinados traços (também no sentido gráfico literal da palavra) da sua fisionomia e postura : e não, de modo algum, da sua expressão, já que se trata, antes de mais, de banir a expressão.
Se o ponto de partida da relação com o corpo representado é a fotografia (por vezes associada aos métodos próprios do trabalho de casting), já o tipo de traços retidos e o tipo de linha que os configura poderiam ser relacionados, na sua origem, com alguns exemplos consagrados da BD francesa e belga, ou, nalguns aspetos mais particulares, com a BD e a animação japonesas.
O resultado final, apesar de se tratar de um trabalho totalmente feito à mão, tem pontos de contacto com formas de figuração gráfica e digital que hoje se multiplicam nos écrans das pequenitas máquinas sem as quais tantas jovens criaturas parecem não saber o que fazer nem com as mãos nem com os olhos.
... e no entanto, mesmo sem alma (como se diz ser próprio de alguns animais) e sem carne (como é próprio das imagens) a existência de corpos (ou uma espécie de pré-existência de corpos) é sinalizada pelas linhas que lhes designam pontos de consistência e pelos traços que lhes apontam vetores de deslocação que, quem sabe, um dia, ascenderão ao estatuto de vocações.

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Texto realizado por ocasião da exposição 'Santo António' de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, no Mimesis Art Museum, na Coreia do Sul, inaugurada em Novembro 2013. 


WHAT ARE WE DOING AFTER THE PRAGA ?




Who needs realism when we can have fakism?
Teatro Praga, 2013


Praga – Capital da República Checa ; fascismo, comunismo, fundamentalismo, terrorismo ; modernismo (segundo alguns documentos do final do século XX) ; terrível doença muito antiga ; Teatro.
(dos Dicionários)

Devia ter começado a escrever isto há seis meses atrás. A primeira frase não teria sido esta e não sei qual teria sido. Na altura revi uma série de espectáculos em DVD, escrevi coisas num caderno de apontamentos “Made in Brazil” que diz na capa “Composition Book” e fiz uma lista de sub-títulos que haviam de, e se calhar ainda hão-de, servir de fio condutor não sei de quê. A vantagem consistiria no facto de, tendo isto começado há já algum tempo, não ser necessário estar agora a começar. Neste momento, e já lá vão algumas linhas, talvez possamos considerar que, assim como assim, isto já começou, mas não é certo que isto seja válido como começo. Aliás não se sabe o que é que poderia ser válido, em geral, e ainda por cima para começo.

E DEPOIS DO ADEUS

Começamos então pela relação com o tempo. Teremos de evitar dizer, lá mais para a frente, que nos vamos agora debruçar sobre a relação com o espaço.
Hoje em dia é mais evidente do que em qualquer outro momento de que eu agora me lembre que não se pode começar, pela razão simples de que tudo já começou. Se nos reportarmos àquilo de que aqui nos vamos ocupar é melhor ainda porque não só tudo já começou como também tudo já acabou e, no entanto, constatamos que estas circunstâncias (embora não ajudem nada) não têm importância nenhuma.
Vejamos então o tempo histórico, que remete para conjunturas sociais (políticas) e teóricas (estéticas). Depois veremos o tempo físico
O que se pode fazer depois de tudo ter já começado e acabado e nós sabermos? Porque não há maneira de não fazer alguma coisa. Se decidi escrever tenho de escrever alguma coisa.

POIS PÓS POIS

Há trinta anos atrás começou a estar em moda falar de pós-modernismo :
o fim das grandes narrativas com pretensões totalizadoras ou totalitárias, o fim da crença em sistemas de critérios universais seja para o que for, e por aí fora : todas essas coisas que toda a gente sabe tão bem que já se nem lembra.
Já nessa altura, a propósito do pós-modernismo, havia uma questão um pouco mais abstracta. Tratar-se-ia de uma nova fase na sucessão mais ou menos linear das conjunturas teóricas (estéticas)? Ou tratar-se-ia de uma outra perspectiva (maneira de ver) ou de um outro tipo de consciência (maneira de pensar) em relação a tudo o que existia e tinha existido ?
A primeira hipótese chegou a ser ponderável, por causa de uma propagação de certos efeitos formais e decorativos, sobretudo na arquitectura mas também noutras artes, que chegaram a parecer esboçar um estilo. A nostalgia retrospectiva começa agora a permitir dedicar algum afeto a esse tom de época que não terá chegado a ser um estilo mas não é por isso menos estimável que os tons de algumas outras épocas. Para qualquer dos efeitos também se pode considerar tudo sempre misturado.
A segunda hipótese parece mais consistente e é mais aflitiva. Faz aflição (depois veremos o problema do tempo físico ou seja a grande aflição resultante da presença de corpos humanos vivos no mundo).
Resumindo dizia-se assim : o modernismo superou as coisas que existiam antes dele e libertou-nos e isso tinha um sentido que se projectava no futuro ; o pós-modernismo desmascarou o modernismo e libertou-nos (de quê?) e isso tem um sentido que não se projecta em coisa nenhuma e muito menos no futuro porque não é exactamente um sentido mas apenas o sentido de uma constatação.
O pós-modernismo, assim entendido, constata que as coisas (não modernas, pré-modernas, modernas, pós-modernas) que existiram, existem e continuarão a existir, não têm o sentido que noutras conjunturas alguns disseram ou acreditaram que elas tinham. Não têm nenhum sentido, se entendermos sentido no sentido que a palavra sentido tinha antes do que aqui entendemos por pós-modernismo.  Isso não implica que as referidas coisas deixem de existir ou que sofram alguma perda (de sentido ? ; como neste momento já será, espero, óbvio, a questão não tem sentido), pelo contrário, beneficiam até de uma intensificação da constatação da sua presença.

Para escrever este texto tive de pensar na eventualidade de eu ser crítico de teatro ou ter conhecimentos especializados de teatro, teoria ou história do teatro.
Há uma fantasia que me costuma transmitir uma sensação de aconchego e saciedade. É quando vou ver espectáculos de teatro a sério, com peças e actores a sério, naqueles teatros cheios da Broadway (não me refiro a musicais) e está frio e chuva lá fora, e no palco está uma sala de estar tradicional ou moderna ou rústica, ou um bar ou uma taberna ou uma sala de um restaurante ou um pequeno quarto, e as portas, as janelas, as luzes e as escadas estão todas no seu lugar e os actores são todos igualmente bons e nos dias seguintes e anteriores leio as críticas dos críticos e eles sabem fazer comparações apropriadas e eu percebo o que eles escrevem e estou quase sempre de acordo, que é a disposição mais adequada à minha índole.
A sensação de conforto de que falo é a mesma que me transmitem as naturezas mortas, em particular se incluírem morangos, cerejas ou pêssegos. Enfim gostos e opiniões parvas.

Não sei como aquilo se faz nem o que depois se diga. Não sei fazer aquele tipo de crítica, não sou especialista de teatro. O facto é que não sei nada. Só tudo. O que não adianta nada. Ou faz toda a diferença. Etc. Invento.
Em resumo não sei falar das coisas que havia antes, da maneira como se falava antes. Antes de quê ? Antes da tal condição pós-moderna.

TRANSPLURIMULTIDISCIPLINAR

Não sabendo falar de teatro a sério, o meu contexto para falar dos Praga é o da arte contemporânea, no qual estou habituado a fazer comentários a partir das muitas vezes repetidas experiências de convívio com as obras, juntando um volume quase razoável de informações talvez pertinentes. Depois é preciso inventar. Assim é mais fácil para mim, talvez até possível.
A maneira mais óbvia de justificar a inclusão do trabalho dos Praga no domínio da arte contemporânea, (na acepção lata que hoje é dada à expressão a partir do alargamento do campo teórico e formal das artes plásticas) é a evidente capacidade que têm manifestado para integrar nas suas obras as mais variadas disciplinas artísticas (teatro, música, ópera, dança, artes plásticas, cinema (em directo, etc) e colaboradores oriundos dessas diferentes áreas. (Vale a pena referir aqui, desde já, a importância também concedida à teoria. Adiante voltaremos ao assunto). A formulação foi incorrecta, de propósito. Os Praga não integraram. Percebe-se que o campo no qual trabalham foi logo desde sempre um campo em que essas disciplinas já estavam combinadas. Isto implica o exercício de uma vocação que se dirige para a criação de um sentimento de comunidade artística. Esta vocação tem em si mesma um valor social e político muito estimável 
É pluridisciplinar, multidisciplinar, transdisciplinar? Não. É pós-disciplinar. Ou seja, a questão das disciplinas é pouco importante. É arte contemporânea e também é teatro, e a correspondente especificidade não é irrelevante mas fica para lá mais à frente. O que é mais relevante é que este campo complexo é fluido e articulado : funciona de forma pertinente, adequada, produtiva, eficaz. As obras funcionam. Transplurimultiwhatever.

NEM TEATRO NEM REALIDADE

O trabalho dos Praga é apresentado com recurso à utilização da palavra teatro. É teatro, o que implica uma especificidade. Dada a minha preferência por ideias muito gerais começo com uma teoria da representação. Esta teoria foi inventada para isto, isto é, para os Praga. Se calhar foi inspirada por eles. Quem sabe? Até agora a minha teoria só tem duas frases.
 
“Qualquer coisa que não seja nem teatro nem realidade”.

“Cinema ao vivo”.

Agora vou tentar escrever mais algumas frases a respeito de cada uma destas frases, correndo o risco de ficar ainda menos certo.

Há situações em que já não é possível representar à moda antiga porque não há tradição, contexto nem vontade. Tudo se passa depois do modernismo e do conceptual. Não é possível representar contra, ou desconstruindo, ou instaurando distâncias (à maneira moderna ou conceptual) em relação às modas antigas porque tudo se passa também depois do pós-modernismo e do pós-conceptual. Estes são dados adquiridos. Impossibilidade do naturalismo e da representação contra o naturalismo ; inevitabilidade da revelação das convenções e das formas de apresentação que fazem com que seja teatro aquilo que é apresentado como teatro.
No mesmo sentido em que as obras de arte conceptual são aquelas obras que são obras de arte porque ao serem apresentadas como obras de arte mostram os processos que fazem com que sejam obras de arte e por isso são ao mesmo tempo uma apresentação da definição de obra de arte. Nos anos 70 também se chamou a isto prática materialista das artes : o que consistia na obrigatoriedade de tornar explícitos os processos e convenções que faziam com que algo se apresentasse como teatro, cinema, etc.
A condição conceptual (ou seja, pós-conceptual) e o seu programa estão incorporados desde o início no trabalho dos Praga e todas as suas obras o demonstram ao tornarem evidentes os processos e mecanismos da sua produção. A exemplificação sistemática desta estratégia conceptualista é feita de modo exaustivo no trabalho chamado “Título”, cujo título é, ele próprio, um exemplo típico da atitude conceptual.

QUE HORAS SÃO ?

Este é o momento para falar do tempo físico ou da experiência física do tempo. Em relação a este tópico a obra ... é exemplar já que se trata de uma actividade que se prolonga durante .... horas. Como muitos dos segmentos desta actividade parecem resultar do exercitamento de uma considerável margem de improvisação cria-se um vasto potencial de  possibilidades de deslizamentos e coincidências entre o tempo de quem está a actuar e o tempo de quem está a assistir.
O prolongamento da duração cria uma empatia física. É por isso que nos mais longos filmes de Warhol temos a sensação que aquilo nos está a acontecer também a nós. Há uma história curiosa a este respeito. A respeito de quê ? Digamos que da duração do tempo para usar uma expressão absurda. Quando Jonas Mekas viu pela primeira vez “Sleep” ficou muito agastado. Não gostou. Depois percebeu que o filme lhe tinha sido apresentado de modo acelerado. Quando voltou a ver o filme com todo o tempo da sua duração rendeu-se à evidência.
O deslizamento do tempo, que é uma espécie de adormecimento do tempo que às vezes se sentia durante... , ao induzir uma confusão entre o nosso tempo e o deles ( antes dir-se-ia entre o tempo de realidade e o tempo da representação mas nós sabemos que essa distinção não é bem nem  tanta assim) gera um efeito de comunidade (que vai para além do efeito de comunidade artística que já referimos a propósito das in-disciplinas) : vai no sentido de uma experiência alargada do sentimento de comunidade que, a ser possível, concederia a estes trabalhos a dimensão política inerente à reivindicação de uma legitimidade baseada na ideia de quorum, entendido como a presença do número de pessoas necessário para que uma decisão seja válida.
A decisão é o que acontece, o quorum são os que lá estão e o resultado é uma transformação, ou seja uma acção política. Acontece alguma coisa porque não pode não acontecer nada e as pessoas estão lá. Há um deslizamento, uma pequena metamorfose silenciosa e as pessoas acham que também estão a viver aquilo. É política.
Gosto muito que em “O Avarento ou A Última Festa” não haja tempo para os actos todos. Neste texto também não vai haver tempo para o texto todo. E nunca há princípio nem fim.

QUE SÍTIO É ESTE ?

Para não deixar de me debruçar sobre a questão do espaço, tal como tinha prometido não fazer, devo acrescentar que se lhe deve aplicar o raciocínio anterior.
Em muitas obras dos Praga há uma propagação epidémica (ou viciosa) de espaços (multiplicação, divisão, sub-divisão e sobreposição de espaços com recurso a cenografia, projecções, filmagens, etc) que teria, também ela, talvez, como limite  político o deslizamento entre o nosso espaço e o espaço deles. Assim no género estamos todos no mesmo sítio. Mas isto não é possível como objectivo para um trabalho em teatro porque já estamos sempre todos no mesmo sítio. Não há outro. Por isso talvez não valha a pena fazer questão de não continuar a estar no palco. Será que este raciocínio é abusivo? Ou até mesmo reacionário?

TEORIA DA REPRESENTAÇÃO (CONTINUAÇÃO)

Devido à circunstância de estarmos na era pós-moderna e pós-conceptual  o escrúpulo conceptual, desconstrucionista ou materialista ou como lhe queiram chamar não tem prioridade ou superioridade em relação a todas as outras coisas que a condição pós-moderna tornou equivalentes: no sentido em que, tendo cada coisa o seu sentido próprio, todas têm, num outro nível de abstracção, o mesmo sentido, que consiste no fato de já nenhuma ter sentido na velha acepção (pré pós-moderna) da palavra sentido.
Assim sendo, os métodos descontrucionistas têm de conviver com métodos citacionistas ou reconstrucionistas em relação ao naturalismo, ao realismo e aos modernismos. (O que é que distingue hoje a citação do original?).
Estes métodos revisionistas podem ser voltados para trás ou para a frente. Ao serem voltados para trás proporcionam grandes momentos de rétro, nostalgia, revivalismo, lirismo, autenticidade ou mesmo kitsch, em relação à produção dos quais os Praga têm a generosa coragem de não ter medo e a surpreendente qualidade de se mostrarem competentes.
Quando os métodos reconstrucionistas são voltados para a frente aparecem as vertigens dos novos realismos em que (parece que) afinal estão a falar deles próprios, das suas vidas e das coisas que os rodeiam. Também aqui os Praga são muito convincentes. Esta é uma das razões, entre muitas outras, que fazem de “Israel” uma obra-prima. Parece realmente que às vezes afinal... É mesmo ele que está ali, com o corpo e a pele e tudo. Parece mesmo que está mesmo a falar da realidade. Porque é que digo parece? Porque acho que não está? Não. Porque não há diferença entre isto (o tal novo realismo virado para a frente), aquilo (as nostalgias) ou outra coisa qualquer que eles ali façam. Uma das razões para esta in-diferenciação é sociológica.
Já se sabe que nenhuma pessoa real é realmente uma pessoa real, que não temos uma identidade mas identidades (em função de diferentes papéis), etc.  Poderíamos mesmo tentar prescindir por completo da identidade, noção e palavra. Lembro-me de um sociólogo italiano (Massimo Canevacci) que sugeria que em vez de dizer eu se começasse a dizer eus. Seria um enriquecimento considerável do uso das formas verbais. É o que eu digo quando digo eu. Mas isso sou eu.

Peço desculpa por tantos "etc." mas não tenho paciência para procurar citações apropriadas à enunciação destas coisas que já toda a gente sabe. Nem todos sabem ? Também não perdem nada por isso, talvez até pelo contrário. 

Assim sendo quando os Praga estão a ser o que são e a falar do que lhes aconteceu (e podemos especular sobre o que, realmente, lhes aconteceu) isso não é ontologicamente diferente do que estão a ser quando estão a ser outra coisa qualquer. Tudo são apenas diferentes modelações e modulações do que estão a fazer ou seja do que estão a ser que é ser e fazer aquilo que são e fazem.
É a capacidade de manter esta equivalência ontológica (não cair nem no teatro nem na realidade) aliada à preservação da intensidade da constatação das suas diferentes modalidades que fazem com que os Praga sejam exemplo da frase que tentei explicar.

CINEMA AO VIVO

Esta é mais fácil de explicar até porque vou despachar o assunto para que a evocação do cinema não venha trazer ainda mais complicações.
Comecemos com uma sensação. Creio que a minha sensação mais próxima do que alguns chamam uma relação direta com a realidade é a sensação que tenho ao ver um filme mudo. Os filmes mudos dos primórdios (qualquer um, documentário ou ficção, talvez até mais ficção). Aquilo aconteceu, aquilo esteve lá e aquelas pessoas estiveram lá a fazer aquilo diante da câmara. A câmara ainda não sabia bem o que estava a fazer, nem como estava a fazer, e elas, as pessoas e as coisas, também não. Não tinham grandes hipóteses de não ser e fazer assim. Não sabiam mais que aquilo. Sabiam menos. Não sabiam mentir, faziam o que podiam: as coisas também. É esta a minha utopia do estado natural. Uma ilusão, é claro. A indiscernível ambiguidade entre o estado de realidade e o estado de representação. Era a isto que me queria referir com a tal equivalência ontológica.
Lá está ela, a realidade, a representar para toda a eternidade, muda e a preto e branco.
Este seria o estado de graça do cinema ao vivo. Depois vem o estado de glória com as codificações do cinema clássico : é o princípio do glorioso esplendor das convenções narrativas e dos estereótipos.
Não sei se ainda é possível sugerir qualquer aproximação à evocação do estado de graça, ou seja aspirar a qualquer relação com a realidade, a não ser através da operacionalização metamórfica das personagens e situações da tradição hollywoodesca. Uma forma mais bizarra de dizer isto é dizer que não é possível qualquer relação com a realidade a não ser através da comédia clássica de Hollywood (Shakespeare, Lubitsch, Cukor). Mas isto já é teoria do cinema ou teoria geral. Fica para a próxima.
Termina assim esta parte do meu texto dedicada a Rudolfo Valentino.

E DEPOIS DO PAI

Agora vamos tratar as diferentes variantes do “e depois de” as quais, caso o que já ficou escrito seja inteligível, se tornam muito mais fáceis de abordar.
Então e depois do pai? (Esta reflexão ocorreu-me durante “O Avarento ou A Última Festa”). Depois do pai tudo mudou e ficou na mesma. Onde fica depois a presença do pai é onde sempre esteve : dentro de cada um, consubstancial ao pai na unidade do espírito de tudo.
Ou então está bem. Vamos fazer uma grande festa, vamos fazer mais uma grande festa. Desta vez vamos poder mas com f.

Então e depois da festa? Aqui conto a história do título deste texto. Nos idos de 80 do século passado (ou seria já 90?) havia uma revista de que eu gostava muito publicada pelo Centro Georges Pompidou, o Beaubourg, como com carinho então se lhe chamava (eu gostava muito dele, Paris e tudo; “mocidade, mocidade ...”. A revista chamava-se “Traverses” e tinha textos e grafismo muito interessantes. Uma vez publicaram um texto de Baudrillard que na altura se considerava muito interessante (eu também gostava muito e ainda gosto) e o texto chamava-se “What are you doing after the orgy?”. Depois de enunciar vários baudrillardismos próprios da época (já não me lembro quais mas eram tão ou mais interessantes quanto todos os outros e não estou a ser irónico) terminava contando uma situação em que um senhor, já na fase final de uma orgia (coisa que ainda não percebi bem o que seja,) se aproxima (ainda mais, deduzo) de uma mulher que lhe pergunta ao ouvido: “What are you doing after the orgy?”. Enfim, é a temática da sedução, etc.
Mas aqui, neste texto, o depois é muito mais vasto (já ninguém se lembra das orgias que nunca existiram ; a menos que fossemos falar de Roma mas não vamos). O depois aqui é também depois de todas as coisas de que já falámos acima.

Para os Praga ainda é mais difícil porque têm que fazer isto tudo depois de tudo e ainda depois de : eles próprios. Mas esse é um problema deles.
Bom, então e depois da festa, e depois da “orgy”? Depois, está muito bom de ver, vamos foder. Mas com p. Com p grande : P.  

 META DISCURSO MAS ONDE ?

Quando todo o discurso funciona como se fosse irónico (porque se ainda se lembram já não é possível acreditar no primeiro grau do discurso, o da expressão da verdadeira verdade autêntica) o segundo grau passa a ser o primeiro e não sei se ainda se pode aplicar a noção de ironia. Talvez se deva falar de falsa ironia ou meta-ironia, mas estas noções não são nada fáceis de definir.
Em todo o caso, como não é possível não fazer alguma coisa (ou melhor : é possível mas esse é um assunto de que eu não falo), para se não fazer o que calhar é preciso pensar.
Eu ainda sou do tempo da “função de comando da teoria”, como dizia Louis Althusser, o último marxista com o charme inerente à volúpia do rigor teórico. Talvez não por coincidência, sofria de graves distúrbios mentais, passou longos períodos internado, assassinou a mulher e acabou por se suicidar. Como se costuma dizer, a realidade ultrapassa a ficção que por sua vez já tinha ultrapassado a teoria. Lá chegaremos.
O fascínio pela teoria e o respeito pelos intelectuais são coisas absolutamente estimáveis. Apesar disso posso perguntar (é uma hipótese): Será que eu gostaria ainda mais de “Oil ... “ (de que eu gosto muito) se não tivesse texto (cinema ao vivo)? Afinal foi Marx que disse (ou terá sido Engels) que a arma da crítica não saberia substituir a crítica das armas. É como a história da festa mas com P...
Depois da festa trata-se de encontrar formas da liberdade que não possam ser confundidas com o terror. Uma coisa que os inimigos da liberdade, os terroristas e os seus cúmplices nunca quiseram compreender.

Mas os intelectuais e o pensamento contemporâneos têm os seus problemas. O primeiro é que a capacidade de gestão e sistematização da informação (infinita) disponível sobre o mundo contemporâneo (este mundo) não é suficiente para se produzir uma visão de conjunto e muito menos para dela extrair uma pragmática (o famoso “Que Fazer?). Até porque, é o segundo problema, não há nenhuma visão de um mundo (não este em particular mas um mundo considerado num nível um pouco mais abstrato) suscetível de integrar uma quantidade de informação sobre este mundo que seja suficiente para fazer raccords que permitam ignorar as zonas de desconhecimento ou absoluta imprevisibilidade.
Isto é, não há nem conhecimento suficiente deste mundo, nem fôlego teórico para apresentar uma visão-do-mundo que se possa apresentar.

É por isso que nenhum pensador consegue apresentar nem sequer uma sugestão minimamente consensual sobre a forma de ultrapassar a crise económica. (Na verdade a verdadeira razão desta incapacidade resulta do facto de a crise económica não ser uma crise na aceção corrente da palavra. Mas a explicação da minha visão da crise económica atual talvez esteja fora do âmbito deste texto.)

É por isso que os intelectuais hoje em dia quase se limitam a apresentar papas de citações amassadas com banalidades, de preferência multiculturalistas, porque são as melhores banalidades.
Sei que devo agora pôr a questão? Ou devo dizer colocar a questão? E onde? Em cima da mesa? Talvez seja melhor dizer que a questão já está em cima da mesa. Qual mesa? Que fazer?
Dadas as já referidas limitações do pensamento teórico (seja no plano analítico, seja no plano programático, isto é, seja conhecimento ou política) é preciso trabalhar no interior dos processos de produção da arte. Um desvio através da arte, de que é exemplo o já referido desvio através da ficção. Aliás não é desvio através de, é ir direto à arte e à ficção, estar lá dentro, trabalhar com os métodos, situações, narrativas e personagens que já lá estão e submetê-los a metamorfoses, torções, subversões e glorificações que talvez nos consigam levar a dizer coisas, a pensar coisas e a fazer coisas que de outra maneira talvez não nos ocorressem. O teatro tem uma importância especial porque é ao vivo e são mesmo as pessoas que estão ali a fazer aquilo com os corpos delas: faz aflição

Os princípios de ação são a liberdade e a fraternidade, os métodos são a imaginação e a metamorfose, o objetivo é a alegria de viver.


É por isso que “A midsummer night’s dream” do Teatro Praga é uma das obras mais importantes a que me foi dado assistir neste jovem século.  


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Texto publicado no livro Who needs realism when we can have fakism?, Teatro Praga, Portugal: 2013, pp. 74-84

NATUREZA ECONÓMICA



Paulo Climachauska 
Galeria Lurixs, Rio de Janeiro



Paulo Climachauska, Cordilheira.




O trabalho de Paulo Climachauska sempre me cativou de um modo contraditório em que se combinam a sedução e a perplexidade. Nada é evidente. Ou melhor, tudo parece evidente, mas nada sendo aquilo que parece, ficamos sem nenhuma certeza quanto ao que quer que seja esse tudo (ou nada) que parece evidente. Afinal é fácil ou difícil?  Ao aceitar o convite para escrever este texto a propósito da exposição na galeria LURIXS de pinturas da série Natureza Económica, aproveito a oportunidade para tentar, em duas laudas, explicar ou, pelo menos, enunciar este paradoxo. Em primeiro lugar, creio que existem dois métodos para começar a escrever sobre o trabalho (ou, neste caso, ambição mais modesta, estes trabalhos) do autor. Estes métodos eu chamaria de método formalista e método contextual.
Segundo o que aqui chamamos método formalista, podemos fingir que nos colocamos na posição de alguém que não tem qualquer informação sobre as referências e os processos que geraram os trabalhos, e que recorre apenas à experiência pessoal de confronto com as pinturas. A palavra apenas aqui é bastante forçada já que esse confronto, por menos informado que seja, já mobiliza toda a memória do nosso observador. Adotando esta postura vejo uma pintura abstrata que me seduz pela depuração geométrica, a elegância do ritmo, o rigor da composição e uma saborosa sabedoria na utilização das cores. Mais (ou menos) que de uma tendência minimalista podemos talvez falar, remetendo para trabalhos anteriores do artista, de uma obsessiva pulsão de “subtração”, que é também uma forma de “esvaziar” clichés. Reparando melhor, talvez não se trate de verdadeiras pinturas abstratas, mas de representações estilizadas de paisagens montanhosas. Será abstrato ou figurativo? Em qualquer dos casos é um prazer continuar a olhar para estas pinturas, e é fácil imaginar a perfeita localização de uma destas pinturas na parede de uma sala. Lembro-me da montanha e do vale em frente da minha casa no Norte de Portugal e tento acertar com as cores das várias intensidades e posições do Sol. Mas não é bem isto. Lembro-me então do meu fascínio infantil por lápis de cor e de como gostava mais de olhar para eles alinhados na caixa uns ao lado dos outros do que propriamente de usá-los. Lembro-me de tentar resolver esta contradição ainda criança, desenhando com os lápis de cor de todas as cores disponíveis na caixa, uns ao lado dos outros, tal como os via na caixa. Esta solução também tinha a vantagem de produzir um desgaste uniforme em todos os lápis, o que permitia que suas pontas se mantivessem alinhadas dentro da caixa. Será que esta recordação inesperada tem alguma pertinência? Como poderia  saber ... uma vez que não existe (ou não o recebi, ou não acreditei nele) um livro de instruções para ver esta (ou, de fato, qualquer outra) pintura. Já que estou em uma exposição de arte, lembro a história da abstração geométrica e da abstração hard-edge em particular. Nesta perspectiva, subjetiva, ingênua, e formalista, sinto prazer diante destas pinturas em função de memórias da minha experiência pessoal genérica e da minha informação artística em particular. O prazer se acentua pela perversidade das linhas oblíquas e quebradas que posso considerar mais excitantes que as linhas retas, ou pela possibilidade de comparações (cores, ângulos, ritmo), por exemplo, com a série de trabalhos  Modelo para armar (2011). Uma comparação que abre um campo de hipóteses de especulação (que aqui não cabe desenvolver) sobre a unidade e diversidade de diferentes séries, aparentemente muito diversificadas, do trabalho do autor. A lógica do jogo.
Chegou agora o momento de exemplificar como seria este texto de acordo com o método contextual. Neste caso, quando olho para as pinturas já sei que a inclinação destas linhas corresponde a valores estatísticos da economia, tal como costumam aparecer nos gráficos com que os economistas gostam de adornar (como eles gostam de mostrar quadros coloridos na televisão ...) a exibição da sua ignorância. Olho então para as linhas quebradas em declive acentuado em direção ao canto inferior esquerdo, e penso, por exemplo, no gráfico que vi há pouco na televisão representando a evolução do valor das ações do Banco Espírito Santo. Um acontecimento que está em vias de se tornar a maior falência da história económica recente e, suspeitamos, um dos mais notáveis episódios da história do crime organizado em Portugal. Já as linhas ascendentes sugerem os gráficos, com os quais convivo diariamente há vários anos, da evolução da dívida externa portuguesa. Nesta perspectiva, as pinturas nos oferecem um modo alternativo de lidar com dados básicos da realidade econômica e social que nos rodeia, desautorizando ou parodiando os discursos estereotipados dos responsáveis institucionais, habituados a recorrer a números para disfarçar a corrupção e a incompetência. Mas esta deslocação não é feita segundo os estereótipos críticos tradicionais (a vulgata marxista) que acha que a arte deve ter uma função medicinal (de diagnóstico ou terapêutica) em relação às doenças sociais que nos assolam. A arte não pode ter essa função, dadas as formas da sua inserção cultural (privilégio quase exclusivo de uma elite) e económica (inevitável dependência em relação ao mercado) no conjunto da sociedade. Essa função medicinal dependeria da existência de organizações políticas ou cívicas informadas, honestas e competentes, ou seja, entidades que a maioria das sociedades contemporâneas se revelam obviamente incapazes de gerar. O que a arte pode ser é aquilo que ela é: uma forma de pensamento e de trabalho que mobiliza a inteligência e a sensibilidade de um modo peculiar. Um modo que nos obriga a voltar a acreditar que é possível ver as coisas de uma maneira que ainda não tinha sido inventada e que ainda não é possível entender completamente. Poderão agora perguntar qual é afinal a maneira mais correta de olhar para as pinturas de Paulo Climachauska. Responderei que não existe uma maneira que seja a mais correta e que essa ambiguidade, eventualmente perversa, cria a fria tensão semântica que é o segredo do fascínio da obra do autor.
Agora vou abrir, mais uma vez, como se fosse a primeira vez, as minhas caixas de lápis de cor.

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Texto realizado por ocasião da exposição individual de Paulo Climachauska, na Galeria LURIXS, no Rio de Janeiro, de 22 de Agosto a 17 de Outubro de 2014.