Mesmo ao lado do pequeno estúdio que desta vez me calhou
arrendar, à porta de um modesto e simpático restaurante italiano, estou a ver
um rapaz a fazer conversa de angariação de clientes, com muitos gestos e
sapatos sem meias com os atacadores soltos. Achei que podia ser um excelente actor
e acabei por saber que tinha chegado há pouco de Nápoles, tem saudades do mar, começou
há dois dias a estudar inglês e já era ou ia ser ator. Por mim já é e é bom
saber que os bons estereótipos nova-iorquinos continuam a funcionar. Está agora
a falar ao telefone com a mãe e vê-se que está muito contente.
É um pouco ridículo pretender caracterizar uma coisa tão
extraordinária como Nova Iorque mas o artista Lawrence Weiner, para além de me
oferecer ao almoço búzios frescos comprados no mercado, a mim que pensava que só
havia mar em Portugal, disse duas coisas que tive de anotar : “Nova Iorque é a única
cidade em que se pode estar em casa sem ter a sensação de ser um looser (perdedor)” e uma outra, mais
enigmática, “Em Nova Iorque a chuva não vem do céu, vem do chão”. One way & another & another, lê-se
numa série recente de trabalhos do autor. De todas as maneiras ao mesmo tempo,
a possibilidade de todos os caminhos, as maneiras de levar todos os tempos à
comunhão, a contemporaneidade, portanto.
Este é um tema de The Nightman Cometh
(2011) de Yang Fudong (Pequim, 1971). Numa paisagem coberta de neve (a preto e
branco), um guerreiro de tempos antigos: ferido e perdido depois de uma batalha
perdida. Entre sonho e reflexão, hesita sobre o caminho a tomar e os seus
pensamentos dão lugar a três personagens com roupas modernas que, na mesma
paisagem, partilham as suas dúvidas e expectativas.
Fudong descreve o filme não como histórico ou alegórico mas
como “neo-realista”: “‘Neo-realismo’ é um teatro da história onde entram em
jogo as condições correntes das sociedades contemporâneas. Quem realmente
existe é o guerreiro nobre com o seu traje de época ou o fantasma com roupa
moderna? Quando a cena do campo de batalha e outros eventos históricos aparecem
e reaparecem, eles pertencem a quê, ao passado, ao presente ou ao crepúsculo do
futuro?”.
The Fifth Night (2010),
outra obra incluída na recente exposição na Galeria Marian Goodman, apresenta
em 7 ecrãs - a acção vai transitando de uns para outros – estilizadas cenas do
quotidiano numa praça que evoca Xangai nos anos 30. Diferentes grupos de pessoas, na sua maioria homens e
mulheres jovens, vão passando, descansando, cruzando olhares e trajectos que
nunca se chegam a encontrar. Vamos descobrindo sucessivos fragmentos do espaço até
compreendermos que estão todos no mesmo lugar - mas não sentimos que estejam juntos
- e que tudo está afinal a ser filmado. Quererá isto dizer que não esteja a ser
vivido ?
Lidamos aqui com características da nossa contemporaneidade
que a torna talvez diferente de anteriores contemporaneidades. (Hipótese 1) Não só todos os tempos
existem ao mesmo tempo, num tempo que não sabemos qual é - embora saibamos que
tem de ser o presente -, como não é possível distinguir entre realidade e
representação. Os novos meios tecnológicos, no âmbito do cinema e da realidade
virtual, fazem com que esta impossibilidade de distinção seja uma evidência técnica
(uma questão crucial da reflexão artística atual é a revisão das noções de
documentário e ficção e das relações entre elas). Podemos ver com o maior detalhe
realista coisas que nunca aconteceram ou aconteceram há muitos séculos atrás e,
ao mesmo tempo, por mais câmaras que lhes apontem, não conseguimos ver o que se
passa neste momento em praças cheias de pessoas por esse mundo fora, porque ninguém
sabe para onde virar a câmara nem o que fazer com o que ela vê. Mas a questão não
é tecnológica. Diz antes respeito à noção de realidade e à necessidade do seu
abandono ou de uma nova conceptualização que lhe dê textura. Uma reinvenção da
terceira dimensão não, agora, na pintura, mas na velha realidade, ela própria.
(Hipótese 2)
Na realidade, aquilo a que as pessoas chamam realidade
(incluindo as pessoas que acham que criticam a dita realidade) é tão desprovido
de sentido que somos forçados a concluir que não existe. Mas então o que é que
existe? Existem os corpos vivos, ou seja os corpos que se mexem, e existe o
cinema. Vamos por partes. Mas então os corpos vivos não são reais? São, mas,
pobres corpos, não chegam para fazer uma realidade, muito menos “a” realidade.
O cinema é preciso fazê-lo. Pode-se fazer tudo o que se quiser e depois de
estar feito é eterno como a vida. Mas não é a mesma coisa. Para acabar
rapidamente com esta deriva especulativa que talvez pareça absurda digamos que
não se deve confundir a vida com a realidade. Só há vida.
Já é um hábito. Quando vou à Galeria Marian Goodman, a menos
que seja uma inauguração seguida de jantar, passo depois pela Abercrombie &
Fitch para descontraír e apreciar um dos melhores castings do mundo (refiro-me aos funcionários). É difícil suportar
a música e a roupa só é possível porque a banalidade a salva da vulgaridade mas
as pessoas fazem fila de espera para entrarem ou serem fotografadas ao lado do
rapaz de tronco nu que adorna a entrada (no Inverno põem-lhe um aquecedor por
cima ou um casaco de peles, sintético, imagino).
Ouso falar desta loja porque lhe descobri alguma
legitimidade artística na pessoa do autor que faz as pinturas murais que
acompanham as escadas. Na galeria Clampart, em Chelsea, soube que se chama Mark
Beard. A exposição que assina enquanto curador reúne pinturas de Hippolyte-Alexandre
Michallon (1849-1930) e Bruce Sargeant (1898-1938). Segundo as biografias
disponíveis, Michallon, de origem francesa, ensinou em Londres e caiu em descrédito,
no início do século XX, devido à sua recusa do modernismo e fidelidade à
representação académica do corpo humano. Em 1922, Sargeant (de quem Beard diz
ser sobrinho-neto) era o seu único discípulo e se não tivesse morrido aos 40
anos teria alcançado o prestígio de nomes como Whistler, Thomas Eakins ou
Winslow Homer, “artistas com os quais o seu estilo muitas vezes é comparado”. Trata-se
de personagens inventadas e todas as pinturas são feitas por Beard. Vários tempos ao mesmo tempo com
realidade, história e ficção entrecruzadas.
Falamos de corpos em movimento e talvez não seja por acaso
que a performance é a nova estrela em ascensão no panorama da arte contemporânea.
A retrospectiva de Marina Abramovic, no MoMA, foi o momento revelador e,
enquanto a artista se encena cada vez mais enquanto diva da performance e
atinge a consagração absoluta, a Bienal do Whitney consagrou a tendência, dando
à dança e à performance um lugar e um espaço (físico, um andar inteiro, e conceptual)
da maior relevância e um prémio.
Numa discreta esquina de uma zona de passagem que passou
despercebida a muitos visitantes da Bienal, entre paredes cobertas com pequenos
esquemas do interior de uma complicada casa, o manequim de um rapaz muito jovem,
com um fantoche numa mão, diz um monólogo interior em que os labirintos
indecifráveis do seu tenro espírito se confundem com corredores paralelos de
uma casa sem fim e sem saída. De vez em quando os lábios mexem ou o peito
respira soltando um suspiro. O texto é de Dennis Cooper, um dos maiores escritores
americanos vivos (pensem em Sade ou Hervé Guibert no século XXI). Leia-se o livro
mais recente, The Marbled Swarm, (em
Portugal o autor está editado pela Bico de Pena, com Purosexo.com e Fio Solto),
que se relaciona diretamente com esta peça. A habitual fixação em corpos jovens
atormentados, na carne e no espírito, e abandonados a cruéis narrativas,
errantes e sem redenção. O resultado final desta colaboração entre o escritor e
a artista Gisèle Vienne há-de vir a ser uma encenação ou performance.
Quando entrei na Galeria Elizabeth Dee, para ver a exposição
de Ryan McNamara (jovem artista americano que trabalha em dança, performance e
artes plásticas), o artista convidou-me, como a todos os visitantes, durante
duas semanas, para me associar a umas pessoas que já lá estavam numa pequena
coreografia que ele propôs e fotografou. A mim, como não quis fazer exercício físico,
coube-me ficar em pé em cima de uma cadeira enquanto um casal circulava à minha
volta mexendo os braços. Com todas as fotografias que produziu, McNamara fez
uma série de colagens com as quais cobriu painéis, esculturas e outros objetos
apresentados no mesmo espaço, nas duas semanas subsequentes, constituindo a segunda
parte da exposição. Uma maneira original e eficaz de responder a uma questão da
maior atualidade – como é que se expõe performance? - , tendo
até o cuidado de assegurar a participação do público.
Para entrar no stand
da Galeria Sean Kelly, na Feira de Arte em Basel, não passei por uma porta mas
pelo estreito espaço disponível entre um homem e uma mulher nus, virados um
para o outro. É uma recriação de uma performance de Marina Abramovic (Imponderabilia, 1977). Perguntei o preço
mas por estranho que pareça a obra não está à venda.
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Última das três crónicas nova-iorquinas publicadas no Jornal 'Público', a 16/17/18 Agosto de 2012, na secção de Cultura. (pp: 24-25)
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