Festival de Parintins na Amazónia Bruno Domingos/Reuters |
A
propósito dos modos como passamos o tempo ou o tempo passa (marcar o ritmo)
resolvi falar da mais apaixonante experiência cultural que vivi no último ano:
o Festival Folclórico de Parintins, uma ilha com 100.000 habitantes (recebe
cerca de 50.000 visitantes durante o festival) no grande estado do Amazonas, no
Brasil.
Iniciado
(com formato que se foi alterando) em 1965, o festival realiza-se agora todos
os anos no último fim-de-semana de Junho. Numa arena desenhada em forma de
cabeça de boi, chamada Bumbódromo, em três noites consecutivas, as agremiações
representativas do Boi Caprichoso e do Boi Garantido apresentam, cada uma, três
espectáculos inéditos, cada um com duas horas de duração. A exibição reúne música
(“Boi” também é uma forma musical), dança, canções, declamações e uma
sofisticada cenografia composta por dezenas de “alegorias” — engenhosas
construções cénicas animadas por uma multiplicidade de “efeitos especiais”. O
espectáculo não envolve nenhum boi, animal vivo. No final das três noites um
júri (sempre acusado, por certo justamente, de corrupção) atribui a vitória a
um dos bois.
A
origem da celebração é descrita de várias formas : festividade de origem
religiosa oriunda do Nordeste; fábula mágica sobre a morte e ressurreição de um
boi e a salvação de uma comunidade; criação, no início do século XX, de
dois pequenos bois, brinquedos artesanais, por duas crianças que se tornaram
figuras de referência local. As descrições disponíveis são intermináveis e
contraditórias. Hoje em dia, o elemento mais forte é a valorização das
especificidades culturais da Amazónia, “aldeia mística”.
Importa
o que permanece: a alegria de “brincar de Boi” e a rivalidade entre
os Bois.
O
espectáculo oferecido pelos Bois-Bumbá reúne, de forma original, as
características de três empolgantes experiências culturais: a ópera, o futebol
e o Carnaval.
Ao
falar de ópera recordo aproximações a encenações barrocas e, sobretudo, a
experiência do “Ring” de Wagner, em particular quando se assiste às quatro
óperas em sequência num curto período de tempo. Retenho, em comum, o império do
ritmo, o arrebatamento da voz e o poder de atracção visual das cenografias. Sem
sequer especular sobre convergências nos modos de combinação entre figuras
reais e sobrenaturais, psicologias humanas e destinos transcendentais, deuses,
heróis, feiticeiros, gigantes, mártires e meros humanos. Não sei quase nada
sobre ópera mas ouso dizer que gosto de ver e ouvir Bryn Terfel (o meu Wotan).
Já no caso do Boi, não hesito em enaltecer a voz de David Assayag, actual
“levantador de toadas” (cantor) do Boi Caprichoso e, por certo, uma das mais
belas vozes vivas no mundo.
Enfim,
paixão. Com a vantagem de a música ser, por definição, uma coisa
incompreensível, o que significa que pode (não) ser compreendida por todos.
O
tópico da rivalidade conduz-nos ao futebol. A rivalidade entre os dois bois é
tal que a pequena ilha de Parintins está, para quase todos os efeitos práticos,
dividida em duas partes, em que imperam de um lado a cor azul e do outro a cor
vermelha. É o único local do mundo onde a Coca-Cola é vendida em latas não
apenas vermelhas mas também azuis. O Bumbódromo está dividido ao meio, ficando
de um lado a “galera” do Caprichoso e do outro a “galera” do Garantido. Não se
pode (mesmo) estar no meio de uma “galera” vestido com a cor do “Boi
contrário”. Durante a exibição do seu Boi o respectivo público (também sujeito
a pontuação, pois faz parte da apresentação) actua, acompanhando o espectáculo
(de forma ainda mais intensa que o público do futebol, mesmo se considerarmos o
público do Liverpool nas suas melhores tardes), enquanto a outra metade da
bancada permanece em silêncio e sem iluminação. Contam-se histórias de
prefeitos que mandaram alterar as cores nos semáforos e nas passadeiras para
peões de acordo com as cores dos seus bois. A natureza lúdica do espectáculo
não exclui uma radical rivalidade com elaboradas implicações políticas e
financeiras.
Para
ilustrar a dimensão dramática (“operática”) do futebol em geral bastará
recordar a saga do Brasil na Copa 2014: desde o atentado colombiano (talvez
encomendado pelos argentinos) contra Neymar até ao desfecho “trágico”(1-7).
Enfim,
paixão. Com a vantagem de o prazer do jogo (combate) e o desejo de vitória
serem sentimentos tão pouco nobres quanto partilháveis por toda a espécie
humana.
Aqui
chegados, a evocação do Carnaval já deve parecer óbvia, mas importa esclarecer
que a principal referência, apesar das semelhanças formais, não é o Carnaval do
Rio (que de resto contrata em Parintins muitos dos seus melhores colaboradores
cenográficos), um espectáculo relativamente convencional.
Invoco
o Carnaval de rua, tomando como exemplo o Carnaval de Salvador, que permite uma
participação intensa e abrangente e uma interpenetração fluida entre performers, participantes e
espectadores. Carlinhos Brown é famoso (entre outras coisas, por exemplo, o
cabelo) por “puxar” o “trio” no chão, no “arrastão” da manhã de Quarta-feira de
Cinzas.
Há
diferenças entre ir em cima do “trio eléctrico”, assistir “de” camarote,
ir “dentro” da “corda” (que delimita o espaço de quem pagou para estar junto ao
“trio”) ou ir na “pipoca” (fora da “corda”), mas não há como excluir quem quer
que seja. Não pode ser proibido estar na rua. As ruas ficam fisicamente cheias.
Enfim,
paixão. Com a vantagem de toda a população estar, por definição, convidada e
convocada.
Há
outra nuance.
No
Carnaval do Rio existe um júri que, este ano (obra-prima de ironia e verdadeiro
hino à corrupção), resolveu distinguir uma escola que homenageou (a troco de
dinheiro, segundo alguns rumores) a Guiné Equatorial, prestigiado bastião da
“lusofonia”.
Em
Salvador não há um júri mas um método difuso de sondagem que faz emergir, como
que por consenso, a música do Carnaval. Não se sabe bem porquê mas toda a gente
vai percebendo, ao longo do Carnaval, qual vai ser a música do Carnaval, que
acaba por ir sendo cantada por múltiplos intérpretes. Este ano, Márcio Victor
(líder da banda Psirico) ganhou com Tem
Xenhenhem. Já tinha ganho o ano passado com o inesquecível Lepo Lepo e, em 2008, com Mulher Brasileira (Toda Boa). O ritmo é
mais ou menos sempre o mesmo (o melhor do “Pagode”), tal como o assunto (de
inspiração, por assim dizer, “neo-pós-feminista” ou “neo-queer”), mas também
não há assim muitos assuntos susceptíveis de interessar (quase) todas as
pessoas.
Mais
aliciante, do ponto de vista sociológico, o segundo lugar alcançado este ano
por Igor Kannario, que só à última hora foi autorizado a desfilar, devido à sua
alegada relação com pessoas envolvidas em práticas ilegais (e que não são nem
políticos nem líderes de grandes empresas ). Os refrões dos seus maiores
sucessos são lapidares : “Eu não sou de baixar a cabeça para ninguém” e “Tudo
nosso nada deles”, que até o prefeito ACM Neto acabou por ter de trautear em
cima de um “trio” em directo para a televisão.
Igor
Kannario, o “Príncipe do Gueto”, foi seguido, sem “corda”, pela maior multidão
do Carnaval de Salvador 2015: a maioria, como não poderia deixar de ser, veio
do Bairro, como não poderia deixar de ser, da Liberdade.
“É
nois !”.
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Alexandre Melo, "...E o Ritmo é de Boi!", in Jornal Público, edição especial "25 Dar Tempo ao Tempo", 5 de Março de 2015.
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