Podemos começar por enumerar os materiais presentes: ferro, mogno, vidro,
espelho, chumbo, objectos encontrados, feltro, veludo, cabedal, papel, tinta. E
enunciar algumas das palavras que emergem destes trabalhos ou que neles estão
inscritas: “obscurecer”, “exultar”, “amor”, “magnificant”, “atrocidade”, “anunciação”, “tristesse”. Vejamos a seguir a diversidade das formas sob as quais
estes elementos se apresentam, metódica e rigorosamente organizados por camadas
de tinta e pela cadência regular da pincelada. Esculturas de parede em que os
objectos e palavras são elevados ao estatuto de ícones: complexas esculturas em
que todos os elementos nos aparecem combinados mas sujeitos a uma ordem de
aparência clássica.
Submetidas a uma análise formal, estas peças podem surgir como resultado de
um jogo de contrastes, evidentemente premeditado: horizontal / vertical, curvo
/ recto, transparente / opaco, duro / suave, brilhante / baço. Outro tipo de
exame, necessariamente num plano de maior abstracção, pode revelar-nos a tensão
entre uma conceptualidade ambiciosa e o generoso prazer dos materiais – ou
entre a sedução de uma opulência física e a austeridade de uma vocação
secreta.
As peças de Cabrita Reis produzem como que um efeito de “sofisticação”
visual; mas o que de facto encenam é uma progressiva densidade analítica. Um
exemplo possível: a placa de chumbo que tem gravado o nome da exposição – “A
sombra na água” – e que poderemos entender como metáfora mais global e mais
complexa: o que está em causa não é a evidência de um objecto, não é o
espectáculo da sua imagem. O que está em causa é a relação entre um corpo que
se retira (para dar lugar à sua sombra) e o devir sempre permanente de um
espaço de profundidade (a água). Essa tensão induz no espectador uma atitude
interrogativa que o aproxima de cada uma das peças como se nesse movimento se
defrontasse com uma inevitável obscuridade ou, para sermos mais explícitos,
como se essa aproximação o conduzisse a uma fonte de conhecimento imediatamente
pressentida e contudo obscura na sua evidência.
O exercício de inteligência não toma a forma da evidência do saber. A
inteligência de cada peça consiste na assumpção do seu processo criativo como
um acto de querer saber.
Outro exemplo a acrescentar: uma mesa de tampo de vidro. Sobre esse tampo,
deitados, três cilindros de metal, sobre os quais se apoiam três placas de
vidro. Na parede, numa relação de perpendicularidade com a mesa, um rectângulo
de veludo preto. O mesmo jogo de contrastes. O título é “Cocteau”. A
inteligência como adensamento do mistério: uma definição provável de complexidade
da qual decorre o acto de criação artística. Olhar para “Cocteau” e ter
saudades de Radiguet.
Voltando ao chumbo: uma placa escondida atrás de uma parede, onde estão
gravadas as palavras Marcel (Duchamp), Joseph (Beuys), Francis (Picabia). A
possibilidade de uma memoria nesta exposição, e assim discretamente revelada,
explícita, sem fazer disso uma declaração óbvia, a recusa da inocência à
critica.
Na obra de Cabrita Reis somos confrontados com a emergência de um sentido
de mistério. Tudo nos parece surgir com uma excessiva “luminosidade”, com uma
irrepreensível “clareza”, com uma obsessiva devolução da “imagem” (os brilhos,
a transparência e a profundidade da pintura, os reflexos dos vidros e dos
espelhos, as superfícies voluptuosas, o chumbo, a madeira, o veludo, o ferro).
Algo nos faz pensar que estamos a ver mais do que nos é dado observar. Mas,
contudo, é precisamente este “falso” oferecimento ao olhar que produz a
presença de um conceito do enigma, como sentido organizador da criação, como
possibilidade para uma vocação de conhecimento.
Estranheza, mistério, subjectividade, organizam a intricada rede de
indícios que, lateralmente – por relação à evidência da obra – nos conduzem
para uma rigorosa geografia da individualidade.
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Alexandre Melo, “Geografia da Individualidade”, in Expresso, Lisboa 7/5/1988.
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