Pedro Cabrita Reis
1991
Pedro Cabrita Reis. A casa da paixão e do pensamento.1990 |
O trabalho de
Pedro Cabrita Reis tem-se progressivamente revelado e confirmado, ao longo de
dez anos, como um trabalho de síntese de tensões contraditórias e
complementares. Entre a intimidade subjectiva e a dimensão metafórica.
Por redução
ao essencial designamos uma lógica de concentração dos efeitos, por oposição a
uma lógica de multiplicação e dispersão dos efeitos. Seja em termos formais ou
visuais, seja em termos simbólicos ou de significado, as obras de Cabrita Reis
operam uma convergência de todos os elementos numa totalidade eficaz. Uma
imposição categórica da força da presença da obra.
A vocação
monumental consiste na capacidade dos trabalhos de Cabrita Reis para marcarem e
sobredeterminarem de um modo global a totalidade do espaço em que se
apresentam. Esta capacidade pode traduzir-se na efectiva realização de
construções monumentais ou grandes instalações. Mas também pode manifestar-se
na pura e simples presença de uma pintura muito escura em que a custo se
distingue uma figura ou forma.
Quando
falamos de intimidade subjectiva convém deixar bem claro que não se trata nem
de um pendor narrativo autobiográfico, nem de expressionismo psicológico, nem
de uma valorização particular de referências literárias de índole sentimental.
O que chamamos intimidade subjectiva corresponde ao facto de qualquer peça de
Cabrita Reis manifestar de modo inequívoco a marca da presença e do trabalho de
um ser humano. Mais exactamente de um artista, um autor, o autor.
Independentemente
de serem mais ou menos espectaculares, mais ou menos depuradas, todas as peças
de Cabrita Reis deixam pressentir a matéria do corpo que deu forma à
construção. Elas são a consequência da intervenção da mão do homem. São o rasto
da passagem da “mão do artista”. A referência à “mão do artista” não remete
aqui para qualquer talento técnico único nem para qualquer alquimia
transcendente. É a eficácia concreta da presença de cada peça que nos força a
invocar um universo de afectos pessoais que no entanto permanecem privados,
fechados, secretos, apenas pressentidos.
A dimensão
metafórica é talvez o aspecto mais evidente do trabalho de Cabrita Reis e
reflecte o seu poder de convocação dos grandes temas e valores sociológicos ou
metafísicos. Falamos de dimensão metafórica porque esta convocação é feita de
forma alusiva, indirecta, ambígua. Não se trata de ilustrar narrativas
místicas, análises sociológicas ou doutrinas ideológicas. Trata-se de criar um
contexto material de emergência de significados que dizem respeito a valores
fulcrais da existência: as origens primordiais, as energias vitais, os fins
últimos.
Cabrita Reis
não pode ser definido pela prática de uma disciplina específica – pintura,
escultura ou instalação – ou por constantes da aparência formal das suas obras.
Pelo contrário, a sua atitude de artista só se pode entender se for situada
precisamente ao nível dos valores que a estruturam enquanto atitude.
Na pintura ou
desenho, na escultura ou instalação, na representação ou figuração, nas
referências abstractas ou geométricas, manifesta-se a mesma deliberação no
sentido de eleger e impor as formas primordiais, os modelos arquetípicos. A
caça, o mensageiro, a árvore, a cruz, a casa, a mesa, o poço, o canal,
participam de uma mesma dinâmica de invocação, reactualização e reinstauração
de valores originários. O princípio e o sempre. A simples enumeração dos
títulos de algumas das suas exposições mais antigas pode ajudar a circunscrever
este universo de referência. “Cenas de caça e da guerra” (1983), “Os discretos
mensageiros” (1984), “De um santuário e certos lugares” (1985), “Da ordem e do
caos” (1986), “Anima et macula” (1987), “A sombra na água” (1988), “Melancolia”
(1989). O que chamamos redução ao essencial não é, em rigor, uma redução. Não
se trata de uma estilização ou de uma promoção da evidência de uma forma dada.
Trata-se, em cada caso, de, a partir da referência a um valor fundador,
manifestar, através da presença concreta da obra, um processo de construção e
localização – no plano material e no plano da significação. Um processo
específico, no sentido de ser o portador da autoridade de um autor. Um processo
aberto, no sentido de se propor a celebração do seu confronto com o observador.
Um processo que remete para uma vocação monumental, que nalguns momentos se
afirmou pela encenação do excesso e hoje se afirma numa dimensão de maior
austeridade e silêncio.
Os trabalhos
realizados por Cabrita Reis ao longo dos dois últimos anos, apresentam um
conjunto de características suficientemente próximas e peculiares para que se
justifique tratá-los como uma série. Uma primeira aproximação a este grupo de
trabalhos pode consistir na enumeração de alguns dos seus títulos que para além
do seu valor próprio em relação a cada peça ajudam a delinear a atmosfera geral
do conjunto.
Casa da
serenidade (Gal. Pedro Oliveira), Casa da pobreza (Gal. Cómicos), Casa do
esquecimento (Gal. Pedro Oliveira), Casa da família (Centre Sta. Mónica,
Barcelona), Casa da sombra, Casa dos sussurros, Casa do silêncio branco, Casa
do sono, Soledad / sequedad para António Machado (Fund. Luís Cernuda, Sevilha),
Casa dos suaves odores (Gal. Cómicos, Lisboa), Alexandria (Convento S.
Francisco, Beja). Todas estas esculturas ou esculturas / instalações se
caracterizam formalmente pelo uso de madeira e gesso – materiais rudes, pobres
– pelo predomínio absoluto da cor branca e pelo seu carácter de construções. Por vezes construídas
em função de uma localização específica. O alfabeto formal é reduzido ao
essencial: plano, linha, quadrado, circunferência; cubo, cilindro,
paralelepípedo; formas abertas, formas fechadas.
As
referencias são arquétipos da arquitectura ou, mais genericamente da
experiência humana de ocupação do espaço. A casa, o banco, a lareira, a mesa. O
poço, a cisterna, a fonte, o tanque, os canais, isto é as formas que originam e
guardam, conduzem e oferecem a água.
Os materiais
utilizados, essencialmente madeira, gesso e cobre, remetem-nos para os
materiais das construções mais artesanais e mais rudimentares. Afastam-se dos
processos da construção industrial e dos efeitos do progresso tecnológico e instauram
um modo de construção mais próximo dos valores dos modos de construção
primitivos.
Encontramos a
memoria de uma relação próxima e directa com a natureza e com a paisagem. Mais
concretamente nalguns trabalhos é possível encontrar o eco das paisagens, dos
campos e da arquitectura do sul ibérico (Alentejo, Andaluzia). A memória dos
modos ancestrais como os homens se relacionaram com a natureza. Por exemplo
para dela recolher conduzir e conservar a água, elemento vital por excelência.
Citemos o trabalho Alexandria, construído em Beja, em torno de um poço, no
claustro de um convento em ruínas. Ou a instalação “Silencia e vertigem”, em
Coimbra, em que a própria água servia de fundo à intervenção do autor. Em
termos mais genéricos refiram-se as relações que podem ser estabelecidas com os
canais de irrigação característicos da agricultura e da paisagem das planícies
do Sul.
Encontramos
igualmente a memória de formais artesanais de construção da habitação. As casas
pobres, precárias, feitas à mão, que ainda hoje se podem encontrar em aldeias
de camponeses ou nas periferias urbanas. Construções que decorrem de um
trabalho manual directamente exercício sobre os materiais e que conservam a
marca da mão humana. Construções que têm ao mesmo tempo a precariedade e a
intensidade, as imperfeições e a clareza, de uma presença íntima.
Procurando
sistematizar o conjunto da referências detectáveis nestas séries de trabalhos
de Cabrita Reis poderíamos identificar dois pólos fundamentais: a casa e a
fonte. Ambas são tratadas como centros originários de energias que depois se
distribuem através de uma rede de canais de circulação reflecte-se na própria
estrutura frontal de muitas das peças.
“Casas da
pobreza” toma a forma de um banco estreitamente fechado à volta de uma mesa.
“Casa da família” evoca o cadeiral que correndo à volta das quatro paredes de
uma sala circunscreve o centro abstracto da casa e constitui o local de reunião
em que se tomam as decisões fundamentais.
A casa
organiza uma série de elementos que remetem para os modos de ocupação humana do
espaço inferior, da habitação. É o espaço privilegiado de concentração e
circulação de afectos, um espaço de comunhão e recolhimento. Por isso são
valorizadas a mesa, à volta da qual a família se reúne para comer, ou a
lareira, fonte de calor e centro simbólico do lar. Veja-se a representação
explícita de uma lareira em “Casa do esquecimento” ou o modo como a instalação
construída para a exposição Pontom/Temse (casa de Fontaynstraat) numa sala em
ruínas se organiza em torno do que teria sido o lugar da lareira. Ainda
relativamente às peças de referência interior vale a pena referir a inclusão
nalgumas das primeiras nalgumas das primeiras peças da série de elementos de
pontuação – que entretanto desapareceram em favor de uma maior austeridade – e
que reforçavam a carga alusiva. Um jarro de água ou um jarro de azeite
denotavam a referência ao elemento líquido e conotavam explicitamente valores
de pureza e de comunhão quase religiosa. Na instalação “Casa da serenidade” um
fio de prumo suspenso remete-nos para uma ideia de ponderação de equilíbrios ou
aferição de energias.
A ideia de
fonte serva para reunir obras cujo elemento central é uma fonte ou reservatório
de água ou outro tipo de energias. São obras que remetem para formas de
transformação humana do espaço exterior e de aproveitamento das energias
naturais. A referência directa à fonte surge-nos nas gárgulas de “Casa dos
suaves odores” ou na instalação “Silêncio e vertigem” em que a própria água
está presente. Outras modalidade de abordagem ao tema surgem com o poço de
“Alexandria” ou com os tanques, reservatórios ou cisternas, cilíndricos ou
paralelepipédicos, abertos ou fechados, que de diferentes formas aparecem em
inúmeras peças desta série. Veja-se por exemplo a exposição “A casa da ordem
interior” (Gal. Joost Declercq) ou “Berlin piece”.
A referência
fundamental é a água e as construções que a recolhem e guardam. Nada impede,
porém, sobretudo em trabalhos mais recentes, que a noção de fonte se possa
alargar a outras formas de energia e que se possa falar da fonte como fonte
energia, em sentido amplo. As construções cilíndricas – por exemplo as de “Ut
cognoscantte” – podem ser comparadas com reservatórios de água mas também de
gás. Os tubos de borracha e o tipo de redes de comunicação utilizados em
trabalhos como “Ascensão” remetem para uma noção geral e circulação de energia
que não tem que ser reduzida à referência directa à água. A água surge como
metáfora maior da vida e da comunicação, mas num contexto em que o fundamental
e a noção de construção de uma rede de canais de circulação e comunicação de
energias.
O trabalho de
Pedro Cabrita Reis pode ser visto como um trabalho de construção de formas
através das quais se possa tornar sensível e inteligível aquilo que corre
através das coisas. A energia cuja passagem faz a diferença entre a vida e a
morte. Aquilo que dá sentido. Nesta medida a água pode tornar-se, por exemplo,
o equivalente da palavra, enquanto valor instituinte que, através da sua
passagem a comunicação – faz nascer o sentido. Daí a referência à biblioteca de
Alexandria. Ou então a água, enquanto exemplo de energia ou metáfora do
significado, e as próprias formas físicas de energia poderiam no limite ser
vistas como metáforas da própria arte. Então, de acordo com as teses
românticas, os objectos artísticos não seriam a “arte” mas apenas lugares por
onde a “arte” poderia passar.
O trabalho de
Pedro Cabrita Reis torna-se assim também conceptualmente exemplar do
entendimento que o autor tem da própria condição e natureza do objecto
artístico e do trabalho do artista. O objecto artístico é aquele que origina,
guarda ou faz passar um sentido que não é fixável, imobilizável, antes
decorrendo da experiência do observador que com ele se confronta.
Deparamo-nos
com o artista como autor de construções elementares que são instâncias da mais
familiar intimidade, e também do maior fôlego metafórico. Deparamo-nos com o
artista como autor de construções elementares que são instâncias da mais
familiar intimidade, e também do maior fôlego metafórico. Deparamo-nos com a
hipótese romântica de definição da condição artística, apresentada não como
demonstração exibicionista de uma tese, mas como problematização radical, da
raiz, da condição contemporânea do artistas.
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Alexandre Melo, “A casa da paixão e do
conhecimento”, in Artscribe, Londres, Maio/Junho, 1991
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