REVOLUCIONÁRIO, LOUCO, SUICIDA, ARTISTA, ARTISTAS







Exposição Werther Effect, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira ©MunicípiodeLoures






Felizmente, os autores do filme e da exposição que aqui me compete apresentar concederam pouca importância à patética narrativa pseudo-romântica do famoso livro do jovem Goethe e do seu irritante protagonista. No filme, retenho a cena de abertura e a evocação da loucura ou da fantasia como formas de superação do contexto social. 

Duas citações permitem, de algum modo, ancorar no livro o tópico irracionalista.

“Concentro o espírito em recolhimento e encontro nele um mundo de pensamentos ... ou antes de percepções confusas e de vagos desejos ... Não são raciocínios, ainda menos projectos de acção, mas intangíveis sonhos que me flutuam ante os olhos e nos quais gostosamente me perco” (p. 18/19).

“Será então destino do homem só ser feliz antes de possuir o uso da razão e depois de o perder ? Pobre louco ! Quanto invejo a tua loucura, a tua perturbação dos sentidos !“ (p. 142/143).

Quanto à cena de abertura, recreando o suicídio de Werther, tem sobretudo um valor estético e formal (veja-se o jogo de cores das roupas) que antecipa as opções estéticas do filme. Destaque para os ténis Nike, numa alusão aos ténis Nike Decade (1993), usados pelos 39 membros da seita “Heaven'sGate” quando cometeram um suicídio colectivo em Março de 1997.

Desde logo o título remete menos para a personagem de Werther do que para o “efeito Werther”, uma noção criada por David Phillips em 1974 para designar um conjunto de suicídios que podem ocorrer na sequência do suicídio de uma pessoa famosa. David Phillips designou desta forma o fenómeno, tomando como exemplo a sucessão de suicídios cometidos de forma que pareciam copiar a morte do protagonista da novela de Goethe após a publicação do livro.

O fio condutor da minha aproximação a estas obras é a noção de “utopia”.

Querendo ser redundante poderia dizer “utopia impossível”: o conteúdo de uma utopia, por definição, é algo não é possível (se fosse, não era uma utopia, era um plano). Prefiro dizer que é a própria forma conceptual da noção de utopia que deixou de ser possível.

Para justificar esta afirmação vamos sondar algumas das formas terminais da experimentação dos limites da possibilidade de convocação da noção de utopia Comentaremos três formas : o Revolucionário, o Louco e o Artista.

As ações dos 4 protagonistas da história que “Werther Effect” nos apresenta podem começar por ser vistas como tentativas de subversão radical e ultrapassagem dos limites das convenções sociais determinadas pelo chamado “sistema”. Aqui se afirmaria uma dimensão revolucionária que, neste caso, se desenvolve sobretudo na via da valorização da atividade sexual, nomeadamente através do recurso a uma pluralidade de drogas capazes de assegurar a persistência da sua pertinência programática e da sua intensidade física e mental. O sexo como forma de libertação e revolução, um pouco ao jeito dos delírios de Wilhelm Reich. O líder do grupo, ausente, é chamado Guilherme, tal como o destinatário das cartas de Werther. Não será necessário explicitar os limites deste tipo de atividade revolucionária (que poderia situar-se, com algum abuso caricatural, no âmbito do que Álvaro Cunhal, num outro tempo, chamou  “Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista”).

Para evocar mais uma tríade, lembremos a “Droga Loucura Morte” da primeira campanha oficial portuguesa (ainda no tempo da ditadura, fase Marcelo Caetano) contra o consumo de drogas. Como seria de esperar, os sugestivos cartazes acabaram por ser adotados, à época, como materiais promocionais da referida “droga”.

Importa assinalar - no modo como se desenha o esgotamento da dinâmica revolucionária do nosso grupo - que o fator que precipita o fracasso é o desaparecimento do líder carismático e a orfandade ideológica, afetiva e sexual a que ela condena todo o grupo. Sem o líder carismático que assegura a identificação e a gratificação desejantes nada tem sentido e não resta nada para fazer. Talvez não seja por acaso que (quase) todas as experiencias revolucionárias se esvairam através do culto de um ditador carismático sustentado por formas cada vez mais degradadas de corrupção e repressão massivas. É por isso que o problema da sucessão dos ditadores é (quase) sempre trágico. 

Em “Werther Effect”, o Revolucionário transforma-se em Louco, talvez à espera de ser recolhido por extraterrestres ou, na ausência destes, talvez em Suicida.

Mas há uma outra dinâmica utópica suscetivel de, a seu modo, assumir uma intenção revolucionária. Falamos do Artista.





É esta a componente mais importante deste filme e desta exposição. As referencias à teoria das cores de Goethe e aos trabalhos de Oskar Schlemmer, com a Bauhaus e Weimar como pano de fundo, enquadram um admirável   trabalho de construção de esculturas, composição de coreografias, concepção cenográfica, direção de luzes e (na exposição) produção de pinturas (pintadas ou bordadas).

As pinturas - que não aparecem no filme mas podemos ver na exposição - são inspiradas em posters de Herbert Bayer para a exposição da Bauhaus em Weimar, 1923 ou, no caso dos “Urplanze”, 2013/16, em embalagens de drogas sintéticas, daquelas que se compravam, baratas, nas smartshops, como adubos para plantas.

A maioria dos objetos apresentados são indissociáveis das coreografias. São objetos escultóricos para vestir e usar no âmbito de coreografias a que, no contexto das artes plásticas, se poderia chamar performances. Importa sublinhar que são objetos construídos para terem uma relação direta e instrumental com os corpos humanos.

Nas coreografias (vejam-se Schlemmer e a Bauhaus) manifesta-se uma aparente contradição entre os delírios libertários do discurso do grupo e a vocação sistémica e geométrica (chamemos-lhe assim) dos movimentos. O paradoxo é real e remete para a pitoresca ideia de alguns modernismos da primeira metade do século XX segundo a qual (simplificando) a geometria (“Ponto Linha Plano”, à moda de Kandinsky, mais coisa menos coisa) ia salvar o mundo.

Alguns objetos que não se articulam diretamente com as coreografias servem a concepção cenográfica e integram referências à “Wassily Chair” de Marcel Breuer e a uma mesa de Eileen Grey.

Destaco a importância da parede, suporte de intensos efeitos cromáticos, já que o trabalho de direção de luzes (são luzes reais como no teatro e não efeitos de pós produção digital) tem um papel decisivo na construção do ambiente geral do filme e, sobretudo, na indução da interpretação dos sucessivos discursos, variando as cores consoante o tom das declarações enunciadas.

A maior riqueza do trabalho dos autores - tal como se manifesta neste filme e nesta exposição - reside na capacidade de instituir uma “atmosfera utópica”, que se desdobra em múltiplas formas de estímulo e propagação da imaginação produtiva : criar possibilidades de imaginar ideias, objetos, espaços, cenários, sons, discursos, movimentos. Não são as formas que libertam. Não são as luzes que libertam. Não são as ideias que libertam. O que liberta os poderes da imaginação criativa (o que liberta o poder da liberdade, passe a inevitável redundância) é a criação de uma atmosfera produtiva que alimenta, de modo   sempre renovado, expansivo, a capacidade de produzir isto ou aquilo ; ou, mais exatamente, tudo o que se quiser.

“Ainda há muita merda para fazer “. Sem esquecer o significado da palavra “merda” no contexto teatral.

Isto poderia ser uma descrição da dinâmica do trabalho de JPV e NAF, uma dinâmica de trabalho cooperativo que gera uma lógica de comunidade no trabalho de estúdio ou, neste caso, no trabalho das filmagens : os protagonistas são também atores (aliás designados pelos seus nomes próprios) que estão a inventar o seu trabalho de atores.

(Trailer do filme Werther Effect: https://vimeo.com/78301734)


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Alexandre Melo, no âmbito da exposição Werther Effect, na Galeria Municipal Vieira da Silva, no Parque da Cidade, em Loures. De 16 Abril a 29 de Outubro de 2016.






EM SÃO SALVADOR DA BAHIA




Pela primeira vez na vida encontrei uma coisa que não quero compreender. Isto é um progresso e uma maneira de começar a falar do Brasil.

Quis um falso acaso que ocupasse algumas das oito horas do meu voo entre Lisboa e Salvador – porque é só de Salvador, da Bahia, que, por hoje, vou falar – com a leitura da jovial colectânea de textos escritos por Agustina Bessa-Luís entre 1970 e 1974: “Alegria do Mundo – II”. A página 155, Agustina caracteriza um certo tipo de homens que crescem tristes e macambúzios porque na infância não habituaram o “paladar à sensibilidade do vinho, ao gosto da erva de cozinha, ao perfume do cravo, ao hálito da canela quente, ao dormido tempero do alecrim na caça”. Pois bem, feitas as adaptações gastronómicas impostas pela geografia, eu diria que com a gente de Salvador acontece exactamente o contrário. Sabor e saber.

Sentam-se num degrau do passeio como numa poltrona porque todos são proprietários da completa extensão dos seus próprios corpos.

Deitam-se na calçada como em colchão de pena de palácio porque todos são príncipes da completa extensão dos seus próprios corpos.

Estão de pé sobre precaríssimos telhados como estátuas de carne quente em pedestal.

Descansam refastelados num monumento de pneus à porta de uma borracharia.

Três rapazes exemplares, calção de banho a rigor, jogam bilhar à volta de uma luzida mesa de pano verde, bem como no meio de uma rua do Bairro da Liberdade.

“Capoeira”: os exercícios na praia, o espectáculo. Será que se deve considerar uma forma de dança? Ou uma modalidade de performance, pelo menos? Geralmente chamam-lhe arte marcial, mas não tem importância. Há coisas que, sendo o que são, não precisam de ser arte.

Assisti a uma aula de swing baiano – swing moleque – numa Academia junto à Praia do Porto da Barra. Vi a noite inteira cheia de gente a dançar no Pelourinho, nas discotecas. É portanto possível dançar assim, indefinidamente, e sorrir. Não, não é sorrir. É rir.

(Isto vai contra princípios básicos que estipulam que o acesso às pistas de dança esteja reservado a zombies, andróides e tolos ou ingénuos que se ignoram.)

Mas porque é que eles riem? Será que são felizes? Pergunta inquietante.

Há tantos tipos de música que o meu sólido ouvido ainda não consegue distingui-los. É música permamente. Tanto me basta.

Vou tentar acrescentar ainda mais alguns lugares comuns. É provável que isto também seja um progrsso. Aqui entra uma lista de palavras que designam comidas ou conceitos demasiado subtis para que os consiga entender ou definir: moqueca, problema de atraque, caruru, abafe, bóbó, vatapá, poderosa casquinha de siri.
Eu sei: a miséria massiva, a catástrofe das crianças, o caos do sesemprego, tudo ao mesmo tempo. Mas isso já seria abrir uma nova prateleira na estante da sociologia. E eu nem sequer quero falar das igrejas e dos museus.

Perdoem-me, por hoje, ter-me dedicado apenas à vida artística.

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Alexandre Melo, “Em São Salvador da Bahia”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº24,  Lisboa, Maio 1999

FORMOSOS E NÃO SEGUROS


Still from They died with their boots on, Raoul Walsh, 1941


Soldados, Soldadinhos de chumbo, de carne, de sangue. Quando era criança, quando ouvia as vozes de comando, corria para a janela para ver passar os soldados: as fardas, as marchas, as ladainhas, os gritos, os rostos pequenos.

O que são os soldados e o fascínio dos soldados?

São os rapazes, os filhos já homens dos homens, os anos mais vivos dos corpos dos homens, olhos infinitos. Tudo isso organizado em função do ponto de vista mais oposto e mais extremo: o ponto de vista da morte. Isso mesmo, a morte, brutal, metálica, sangrenta, final: o fim, a morte.

Num soldado olhamos para o princípio, a plenitude da presença – a beleza – de um princípio. Visto a partir do ponto de vista do fim.

Ou então podemos inverter a formulação e dizer:
Num soldado olhamos lá para o fundo do fim, a morte e o extermínio, com os olhos joviais da causa da vitória do ideal.

E depois? Ou seja, agora?

Depois da esperança e do extermínio, depois da esperança exterminada e do extermínio da esperança, o que é que os soldados nos oferecem ainda?

Não falo dos soldados reais, os novos soldados americanos, que apenas nos dão a segurança e o futuro, porque eles, eles “tordos morreram calçados” (They died with their boots on, Raoul Walsh, 1941). Falo dos soldados desenhados por Alexandre Conefrey na sua série de trabalhos O fim do Sacro Império / Descalça vai para a fonte (1998).

Os soldados das fardas, das estampas e dos aromas. Os soldados da velha Europa, velhíssimos, europeus e imperiais, os que marcharam durante um século inteiro, um século que levou quase cem anos a chegar ao fim. Os que marcharam descalços, os pés à flor do sangue, sobre os estafados campo da Europa. Iam formosos e não seguros. Fizeram o fim sem saber o que faziam. Deixaram uma nostalgia inviável. Cheia de crimes e de nada.

Nestes soldados perdidos encontramos hoje a coincidência da juventude com a morte, do princípio com o fim, da utopia com o terror. O contorno de uma fascinante história podre fixado num olhar eternamente espantado.
Sobram as fardas, as estampas e as posturas.

No grande cemitério europeu floresceram jarros podres e listas, intermináveis listas, de vítimas.

Nous sommes tous de juifs allemands”. A paisagem da história. O jardim do ideal, lá onde a ordem se transformou em crime.

O olhar tem de ganhar altura, voar sobre os campos massacrados. Temos de ir mais para trás. Restaurar monumentos e consagrá-los ao amor de uma ordem e de uma paz anterior aos crimes da razão absoluta, totalitária. Desenhar uma aliança.

Onde é que se pode procurar? O que é que se consegue encontrar?

Encontramos as páginas dos velhos livros, as coroas de glórias de heróis mais sábios, os ornamentos da civilidades, os desenhos das letras de alfabetos mais nobres.

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Alexandre Melo, “Formosos e não seguros”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº23,  Lisboa, Abril 1999

EM MUNIQUE



Akademie der Bildenden Künste, München


Na última semana do passado mês de Janeiro, estive em Munique para conhecer e discutir, em regime de seminário, o trabalho de cerca de três dezenas de artistas e estudantes da Academia de Belas Artes.

A minha primeira intenção, quanto ao início desta crónica, era começar por falar do estado do tempo e da arquitectura da cidade. Depois pensei que podia fazer a economia da introdução turística, e que valia mais descrever alguns dos trabalhos, projectos e ideias que os estudantes me apresentaram. Porque é em conversas como estas, em sucessivas horas de discussões a respeito das maneiras e da procura das maneiras de colocar, abordar, inventar ou resolver os mais variados problemas, que é mais fácil perceber qual a especificidade, a vitalidade e razão de ser do trabalho, da atitude e do resultado da produção daqueles a quem continuamos a chamar artistas.

A quase todas as profissões (e respectivos profissionais) com que deparamos na nossa vida quotidiana, pedimos a sociedade pede, que analisem e resolvam determinados problemas – por exemplo, alimentar-nos, construir uma ponte ou proteger-nos os pés – relativamente aos quais nos poderão ser propostas diferentes hipóteses, tão variadas quanto as possibilidades técnicas em causa e a imaginação estética e intelectual disponíveis. No entanto, todas essas hipóteses têm de satisfazer, minimamente que seja, uma expectativa e um conjunto, mínimo que seja, de requisitos específicos pré-determinados. Poderíamos falar de função, mas dizer expectativa minimamente pré-determinada é mais abrangente.

Só ao artista nade se pede, em termos de expectativa pré-determinada e objectivada. Pede-se-lhe apenas que faça o que quiser, para que, com o que ele fizer, e chamando-lhe arte, podermos nós fazer o que quisermos. Ao artista, portanto, pede-se tudo. Tudo ou nada? Tudo e nada, isso sim.

Passo a enumerar algumas coisas que me ofereceram em Munique.

Astrid Giers propõe-se encher de fumo alguns dos imensos corredores e incontáveis salas da Academia, iluminando tudo de um modo especial, e convocando o público para, do exterior, observar o efeito através dos vidros das janelas. Vincent Mitzev quer ocupar uma das salas construindo no seu interior uma réplica exacta invertida – de cabeça para baixo – da arquitectura e recheio da própria sala. Jolene König pegou no conjunto de armários individuais, onde um grupo de estudantes guarda os seus haveres e materiais de trabalho, e construiu com eles um “muro” que, visto de um lado, exibe uma monocórdica sucessão geométrica de portas rectangulares e, visto do outro, revela os multifacetados conteúdos dos armários, tal como os encontrou na sala de aulas.

Cristina Gómez Barrio quer fazer um filme com a história da criatura de Frankenstein, que estaria ainda hoje viva, algures num deserto gelado, especulando a respeito da vida, do tempo e do amor. Para a gravação do monólogo, espera obter a voz de Nick Cave. Brigit Kramer envolveu o corpo em balões e meias insufláveis e enche-os de ar, ao ritmo mecânico de uma respiração ofegante, registando o processo em vídeo. Katharina Duer, convidada a apresentar um projecto de arte pública para Villingen-Shcwenningn, uma cidade composta por duas comunidades, entre as quais são frequentes conflitos, propôs a construção, numa praça central, de um ponto de encontro, uma casa em vidro sobre a qual seriam gravados mapas das diferentes zonas da cidade. Vêem: falámos de arquitectura, do estado do tempo, do espaço e da experiência própria de convívio numa maneira de falar em que os modos rotineiros de problematizar os assuntos, ou analisar problemas, dão lugar a outros modos de inventar problemas e problematizar rotinas. Outras maneiras, desafiadoras e revitalizantes de pensar isto ou aquilo, de falar disto ou daquilo: tudo e nada.

Chamam-lhe arte. 


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Alexandre Melo, “Em Munique”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº22,  Lisboa, Março 1999


IGOR JESUS


ARTFORUM
Fevereiro 2016


©António Jorge Silva



O modo como IGOR JESUS  concebe uma exposição ( e o modo como podemos compreendê-la ) começa por uma aproximação global ao espaço de exposição no sentido de determinar o processo de transformação a que ele deve ser sujeito para servir os seus objetivos. Neste caso, o desafio é considerável já que se trata da primeira exposição do artista numa galeria que tem um dos maiores espaços contínuos numa galeria privada em Portugal e que, pela primeira vez, sofreu uma alteração estrutural.

À entrada, o artista construiu uma black box onde é projetado, em loop de 31’57’’,  o video que dá o título à exposição : “A última carta ao Pai Natal”. Antes de entrar na luz habitual de uma sala de exposição, o visitante tem de passar (e parar) na escuridão. Adiante veremos o que significa esta passagem. A completar o processo de transformação da sala vemos, ao fundo, o que parece ser uma parede, em posição oblíqua em relação à parede, quase bloqueando o acesso ao último terço da sala. Na verdade é uma pintura monocromática cinzento-azulado (como um céu muito carregado ?), composta por vários paineis com uma dimensão total de 8 metros de comprimento por 3,30 metros de altura. Chama-se “De costas voltadas” (2015). De trás da parede/tela chega-nos o som, que ecoa por toda a galeria, do que depois descobriremos ser um video apresentado num plasma, free standing num plano inclinado e numa posição vertical (POV, video, loop, 1’42’’, 2015).

A exposição fornece-nos a sua chave logo no início mas só no final a entenderemos. Voltemos então à sala escura da entrada. O video alterna imagens de travelings verticais ascendentes e descendentes sobre uma superfície negra com visões rente ao chão do interior de salas de estar domésticas. O ponto de vista é, portanto, o do Pai Natal, subindo e descendo chaminés, para encontrar salas sem pessoas nem nada que indicie a intenção de o acolher. O Pai Natal (a câmara) volta a subir por onde desceu. As filmagens são reais e foram feitas sem autorização dos proprietários ou ocupantes das casas.
Estamos agora preparados para entrar na sala de exposição. Na parede, três trabalhos fazem racord com o video. Poderiam parecer pinturas abstratas negras (a escuridão da fuligem no interior da chaminé ?) mas são impressões de imagens resultantes do corte, colagem e digitalização de polaroids vazias, negras (“Polaroid”, 185x124 cm, 2015).

No espaço que vai até á superfície azul do fundo encontramos no chão um pequeno círculo formado pelos destroços de seis velhos sapatos e ténis cozidos uns aos outros (“Domingo”, 30x26x26 cm, 2015). À parede em frente às polaroids, está preso um pequeno copo invertido cuja transparência é toldada por marcas de resíduos de vinho tinto. Será que, nalgum momento auspicioso do passado, ocorreu uma celebração ?
Por fim, a imagem do video que encontramos atrás da parede/tela mostra-nos, em loop, a queda de uma caixa de som (filmada de frente por uma câmara a ela acoplada) até se estatelar no chão. Temos a visão e o som concretos de uma queda cujo sentido abstrato, talvez para evitar especulações religiosas, é deixado ao livre arbítrio de cada visitante.

Na tradição católica portuguesa quando se aproxima o Natal diz-se às crianças  para escreverem ao Pai Natal ( algumas décadas atrás estas cartas eram dirigidas ao Menino Jesus, o que no caso de Igor Jesus teria tido um efeito ainda mais perturbante ) a pedir aquilo que desejam. O artista contou-me que, na sua última carta ao Pai Natal, pedia-lhe que o levasse com ele. Mas não vamos entrar em especulações biográficas. O pai, o nascimento, a família, a queda, são temas suficientemente gerais para dispensarem exemplificações. Deixemos a cada um a escolha do seu “Point Of View”.

O que mais impressiona, na obra de Igor Jesus, é a capacidade de abordar temáticas da maior intensidade subjetiva e emocional conseguindo evitar as armadilhas da psicologia ou do lirismo vulgares. Pelo contrário, o artista procede através de um rigoroso processo de reversão/ocultação do espaço físico de exposição (como se lhe estivéssemos a ver as “costas”) e através de operações formais de contenção, redução e subtração extremas na construção e seleção dos objetos expostos.

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Texto publicado na revista mensal Artforum, na edição de Fevereiro de 2016, por ocasião da exposição “A última carta ao Pai Natal”, de Igor Jesus, na Galeria Filomena Soares, Lisboa, 2015. 

EM LOS ANGELES


Ed Ruscha, A Particular Kind of Heaven, 1983. Oil on canvas


Agora que penso nisso reparo que Los Angeles é exactamente o sítio onde a Beleza tem sido produzida desde há, pelos menos, mais de meio século. Nem Florença nem Milão, não, Los Angeles, L.A., Beleza com B grande. Não a verdadeira beleza, claro, a verdadeira beleza não existe. A Beleza pura e simplesmente: Hollywood, Beverly Hills, Dinheiro, Sexo, essas coisas com que os forasteiros sonham e à volta das quais L.A. vive. Sabemos, evidentemente, que tudo isto é uma ilusão, uma mentira, uma fraude, nada mais do que a matéria com que são feitos os sonhos.

O que eu quero dizer é que quando começamos a pensar em L.A., começamos a lidar com um estereótipo, um clã de estereótipos. É inevitável. Assim sendo, o melhor é fazê-lo de uma modo aberto, directo. É o que eu tenho tentado fazer com L.A. Provavelmente não quero que a minha relação com a cidade seja crítica ou desconstrutiva. Nem estou certo que ela pudesse sê-lo. E porque é que a minha relação com L.A. deveria ser crítica? Ou porque não?

O que eu julgo ser realmente possível é jogar o jogo das distâncias, pôr em cena um processo de distanciação.

Poderia dizer que este é o tipo de jogo que, pelo menos desde a pop art, tem sido jogado entre a arte – as artes plásticas, a arte contemporânea – e a cultura popular de massas, em geral.

Na sequência de um convite para organizar a exposição anual estudantes de artes plásticas da UCLA – Universidade de Los Angeles – pude apreciar o modo aberto e directo como muitos estudantes lidam com noções de beleza, medo, angústia, glamour, tal como elas se manifestam incorporadas em imagens de rostos, corpos, edifícios, ruas, objectos do quotidiano, heróis cinematográficos. Alguns estarão mais próximos dos estereótipos e dos lugares comuns. Alguns outros são mais elaborados e sofisticados. Alguns enfáticos. Mas, provavelmente, todos nós estamos condenados a parecer demasiado qualquer coisa na nossa relação com os estereótipos que formam o nosso incontornável horizonte cultural. Isto faz parte dos riscos que corremos quando aceitamos jogar o jogo das distâncias.

A maioria dos estudantes com que falei encara o seu trabalho de um modo conceptualmente lúcidos mas descomplexado, pessoal mas comprometido com as imagens do mundo em redor, intenso mas descontraído. Creio que tudo isto faz parte da atmosfera aberta característica da UCLA.

Na minha conversa com os estudantes e as suas obras, no processo de trabalho conducente à organização da exposição, procurei não impor antecipadamente os meus pontos de vista, nem o meu universo pessoal de referências, mas estou certo que não pude evitar as implicações da minha particular relação com a cidade e os seus – meus – estereótipos.

No paragrafo anterior, a palavra mais importante é a palavra “conversa”. Provavelmente, é uma das melhores designações possíveis para o real conteúdo do trabalho de um organizador de exposições ou de um crítico de arte. Por conversa entendo um interminável work in progress. A exposição que inaugurou a 20 de Novembro 1998 na New Wight Gallery da UCLA ou este texto – que é uma tradução parcial adaptada do texto que escrevi para acompanhar a exposição – são momentos de um processo em curso, uma conversa interminável. O jogo continua. Com quantos destes artistas voltarei eu a falar? E em que situações?

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Alexandre Melo, “Em Los Angeles”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº21,  Lisboa, Fevereiro 1999

PAPÉIS



Robert Wilson. Drawings from The White Raven. ©Paula Cooper Gallery



Chega a ser irritante. Há pessoas que pegam numa folha de papel e...pronto, diriam alguns, fazem milagres. Fazem o que querem. Já está. Chega a ser irritante. Robert Wilson é um exemplo.

Olhem para os desenhos da série White Raven, relacionados com a ópera com o mesmo título, e expostos na Galeria Luís Serpa, em Lisboa. Quem já viu Robert Wilson desenhar sabe a certeza, a segurança, a energia. Não, não é uma inspiração. É método, mas é o método de um génio. Se quisermos continuar a utilizar a palavra génio.

A folha de papel é branca, bidimensional. Robert Wilson traças as linhas que quer. Elas serão os eixos que ordenam o espaço – a arquitectura. Robert Wilson distribui os cinzentos, os brancos, os negros, define os pólos que ordenam a visão – a luz. Tudo o resto vem, por acréscimo, povoar o espaço, ocupar o seu lugar, num mundo previamente definido pela arquitectura e a luz.

É mais que um método, é um sistema. As figuras, as coreografias, os sons, os detalhes, depois, podem ser cronometradas até ao milímetro, ao segundo, meio milímetro, meio segundo, para um gesto, um dedo, um ruído, uma palavra, meia palavra. Robert Wilson sabe fazer exactamente o que faz e por isso pode fazê-lo perfeitamente.

Há outros casos. Não muitos, confessemos.

É sempre extraordinário ver uma nova série de trabalhos de Paula Rego. Neste caso, refiro-me a um conjunto de trabalhos sobre papel: estudos para os figurinos do bailado Pra Là e Pra Cá, inspirado nas gravuras de Paula Rego sobre canções infantis inglesas, as Nursery Rhymes. Trabalhos vistos na Galeria 111, em Lisboa.
O que é extraordinário? É ver aquilo acontecer outra vez em frente dos nossos olhos. Outra vez a mesma coisa. Como se diz em expressões como: quando ela se põe a olhar com aqueles olhos, quando ela sai da casa com aquele ar, já se sabe, aquilo vai acontecer outra vez.

Mas aquilo o quê?

São desenhos que começam por ser simples. Personagens, figurinos, adereços, confrontos de personagens, pequenos grupos. Começam assim e ,depois, à medida que vamos olhando melhor, vem o mundo inteiro.
Paula Rego leva-nos outra vez para dentro daquilo, daquele mundo. É como quase se cai nos buracos dos sonhos dos filmes de terror que, bem vistas as coisas, não são bem de terror.

Lá estão todas aquelas figuras que ela nos foi ensinando a considerar familiares, famílias muito especiais, como as dos filmes de Tod Browning: os bons, os maus, os bonitos, os feios, os péssimos, os incorrigíveis, a vergonha e a pouca-vergonha, as mãos fechadas, as caras fechadas, as pernas fortes, os braços fortes, os cabelos, a pele, os pêlos e as penas. Desta vez, uma pequena orgia de pelagens: insectos, pássaros, pessoas, coisas de se lhes passar a mão pela pele, como a pintura sobre o papel.

Paula Rego, assim, sem mais nem menos, põe ao nosso dispor um mundo inteiro. Parece fácil, assim como quem passa a mão, a tinta, sobre uma folha de papel. Mas, na realidade, na verdade, é o trabalho de uma vida inteira. É a isso que se chama um mundo. Mundo. Quase ninguém consegue.

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Alexandre Melo, “Papéis”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº20,  Lisboa, Dez / Jan 1999

PARA RUI CHAFES, EM 1988



Rui Chafes. “Vertigem V”. 1988/89. © Fotografia: Blue Photography Studio (Cepeda)


A palavra arte deve ser associada a intransigência. As coisas que faça o que se chama artista têm de ser a prova de uma inteligência, sentimento, vontade, paixão, obsessão. As coisas que faça o que se chama artista servem para dar mais perplexidade e expectativa a uma presença, mais riqueza e complexidade a um problema, mais inteligência e densidade a uma cumplicidade, mais intensidade e necessidade a um sentimento. Em linguagem muito simples: servem para tornar excepcional a relação com as coisas, as imagens das coisas, isso a que se chama mundo ou os outros. Ou ainda, em linguagem menos singela: demonstrar a coincidência do belo, do bem, do útil e do verdadeiro.

A consciência ou o sentimento de excepção e intransigência estão antes de qualquer produto ou produção.

Inevitável característica das primeiras obras de um artista: serem as primeiras, um mostrar-se a crescer, como mostrar o próprio corpo a crescer. Saber dos perigos, confrontar o medo, defender o segredo sem desistir de o entregar ao mundo.

Um artista novo reconhece-se no impulso generoso para revelar o segredo de ser o portador de um novo segredo. Tem de gerir o medo e a coragem para não ficar aquém da revelação. Tem de guardar pudor e recato diante das circunstâncias para não se estragar. Precisa de uma enorme arrogância para não ser confundido com outro qualquer e precisa de se manter perfeitamente vulnerável, diante de todos, para que os que serão o seu destino o reconheçam e acolham sem suspeita.

O segredo de que o artista novo é portador mantém estreitas relações com a revelação de um corpo que sabe de certeza sentida que está a crescer em amor, mas não sabe como bem porquê nem para quê.

Os objectos do artista não são perguntas, nem respostas, nem comentários. Afastam-se das formas dos objectos comuns não apenas para não poderem ser confundidos com eles mas para não poderem ser vistos segundo os usos de veros objectos comuns. Afastam-se das formas abstractas consagradas para que ninguém pense que uma forma bem acabada pode alguma vez constituir, só por si, um motivo válido de satisfação. Afastam-se da escala razoável e ameaça nas conveniências dos sítios que as acolhem para que seja notório que não são razoáveis e não buscam nem o seu próprio confortável equilíbrio nem uma equilibrada harmonia com as paredes e os olhares que as rodeiam. Têm a escala explodida do que é, tem de ser e não pode ser. Dão conta de uma instância originária puramente abstracta, fonte de uma energia decisiva. Cumprem-se num trabalho expansivo e excessivo de desocultação e construção: do fechado ao aberto, da intimidade à exposição, da unidade à proliferação, da luz e da cor protectoras à claridade sem dó. Uma obra. Um corpo de destemor e amor oferecido e abandonado ao mundo.

In Catálogo exposição “Espaço Poligrupo”, Renascença, Março de 1988


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Alexandre Melo, “Para Rui Chafes, em 1988”, in Arte Ibérica, Ano 5, Nº42,  Lisboa, Dez / Jan 2001


EFRAIN


O Observador. 1997.


O trabalho do jovem artista brasileiro Efrain Almeida tem podido ser visto regularmente em Portugal na Galeria Canvas, no Porto. Aqui, falamos de uma exposição recente na Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo.

A montagem da exposição assenta numa relação de simetria entre os trabalhos expostos nas duas paredes que se opõem frontalmente. De cada uma delas irrompem dois pequenos colibris, captados de asas abertas, como que em pleno voo. Dos seus pés partem longos e finos fios vermelhos de canutilho, que descem até ao chão e depois se estendem pelo solo até ao centro da galeria.

Estes fios, ao mesmo tempo que unem cada um dos pares de aves, traçam, no chão da galeria, o contorno vermelho de dois desenhos que quase se tocam. São estes fios que transformam cada par de pássaros num verdadeiro par: lado a lado, unidos por um fio de sangue ou por um fim de alegria. O simples desenho delineado no chão consegue mobilizar todo o espaço da galeria, envolvendo o espectador e conduzindo o seu olhar e os seus passos.

As manchas que as linhas desenham são como as sombras de um voo que os pássaros, presos à parede, não podem soltar, mas conseguem, deste modo, sugerir. Ou como os limites das margens de dois lagos que, no chão da galeria, tanto podem ser uma evocação da natureza, como a evocação de um lago de puras emoções.

Os pássaros, tal como as outras esculturas apresentadas na exposição, são de madeira (cedro) esculpida à mão. No trabalho de Efrain Almeida é nítida a influência do artesanato popular característico da sua região de origem – o sertão do Ceará, no Norte do Brasil – e da sua tradição familiar – o pai era carpinteiro e a mãe costureira. A qualidade oficinal do trabalho transmite-lhe uma excepcional sensibilidade matérica e textural – uma sensibilidade ecológica, poderíamos dizer –, que torna estas esculturas simultaneamente simples e sofisticadas, poderosas e vulneráveis. Nelas encontramos o eco da modelação infantil de brinquedos artesanais, mas também da estatuária religiosa popular – extremamente rica no Brasil – e particularmente dos ex-votos.

No entanto, aquilo que é decisivo nestes trabalhos, e lhes dá a sua marca distintiva e a sua originalidade no riquíssimo panorama cultural da arte brasileira, é a capacidade de Efrain Almeida para superar aquilo que poderia ser uma mera adaptação de tradições ou referências locais, e conseguir dotar a sua obra de uma intensa carga dramática e pessoal. A obra de Efrain é um notável exemplo de uma articulação entre “arte erudita” e “arte popular” que, não pretendendo submeter uma à outra, e rejeitando esta antinomia, acaba por se conseguir afirmar, de um modo plenamente criativo, enquanto “arte contemporânea”.

O cunho original do trabalho é obtido através de uma notável inteligência espacial, como já vimos, e de um agudo sentida da delicadeza. Efrain trabalha com sugestões, insinuações, possibilidades de significação. Nunca com evidências, citações ou redundâncias. O seu trabalho sugere a possibilidade da emergência ou manifestação de um sentimento – o amor, o prazer, o sofrimento, a dor, a comunhão com a natureza, o medo da morte – mas nunca o impõe como uma evidência ou como um tema a comentar.

As três esculturas que completam a exposição, apresentadas na parede entre os dois pares de pássaros, são um bom exemplo das principais referências e preocupações que alimentam a obra do autor. Duas das esculturas são pequenas figuras humanas, cujos corpos se entrecruzam com troncos de árvores. Numa delas, o tronco de árvore prolonga-se, como desenho ou tatuagem, nas costas da figura. Numa outra escultura, duas cabeças são unidas por um ramo, oval, com a forma de uma coroa de espinhos. Os rostos das figuras, como noutros trabalhos do autor, podem ser vistos como auto-retratos.

A ligação directa à Natureza, pressuposta no material escolhido e na maneira de o trabalhar, completa-se nesta representação de uma fusão física entre corpo humano e árvore, carne e madeira. A marca da vida especificamente humana, animal, é talvez concentrada nas pequenas marcas de cor que, por vezes, assinalam os olhos ou os lábios. A representação do sangue é remetida para a cor vermelha dos fios de canotilho.

Mas estes homens-árvore são também, os portadores de referências religiosas católicas: a madeira da cruz à qual foi pregado o corpo de Cristo; o tronco do martírio de São Sebastião; a nudez do corpo, a nudez da madeira, a marca das feridas. Um universo de imagens religiosas que podem estar também muito próximas de figuras do imaginário sexual. Mas também aqui, nas possibilidades de conotação sexual de alguns destes trabalhos, o que nos surge não é a evidência das marcas da sexualidade, mas antes a sugestão de uma sensualidade física em que a pura vibração sentimental é tão importante como a pulsação física, matérica.

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Alexandre Melo, “Efrain”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº41,  Lisboa, Nov / Dez 2000