Houve um
tempo, que por certo correspondeu ao esplendor da juventude de muitas pessoas,
em que o título desta crónica passava por descrição de um forte candidato a
paradigma de beleza. Dizia-se que as raparigas sonhavam com este modelo ideal,
e isso servia de pretexto para os rapazes também sonharem. Os mecanismos de
identificação são complexos.
Nos tempos
que correm, a juventude continua a ser eterna, na medida em que todos os dias
há pessoas que começam a ser jovens, mas não é certo que os ideais de beleza
tenham manifestado a mesma perenidade. Hoje, como todos sabemos, os sonhos
estão mais misturados e coloridos, mas ainda há quem continue a sonhar com o
ideal em causa.
Nobert Bisky
é um pintor que nasceu em Leipzig em 1970 e estudou desde 1993 em Berlim, onde
vive e trabalha. Já agora, e porque estamos em plena operação internacional de
promoção de uma nova vaga de «nova pintura alemã», convém esclarecer que Bisky
não é fácil de integrar na «Escola de Leipzig», inventada a partir do imenso
sucesso de Neo Rauch, e que, para dar um exemplo, tinha um lugar de honra nas
novas aquisições da Colecção Rubell apresentadas este mês durante a Feira de
Arte de Miami. Também diz não sentir afinidades com o «Grupo de Dresden»,
apesar de ser vizinho de estúdio de Eberhard Havekost e Thomas Scheibitz.
Bisky desenha
o seu território de modo muito particular e identificável e é um rapaz louro de
olhos azuis, mas, no que este texto diz respeito, o centro da nossa atenção não
será ele mas o rapaz louro de olhos azuis que, desde há vários anos, as suas
pinturas figuram de modo obsessivo e epidémico.
São adolescentes
de tronco nu, de calções e meias brancas, como nas velhas aulas de ginástica,
e, como não podia deixar de ser, dedicam-se a jogos diversos e movimentados,
exercícios físicos bastante inocentes e apenas um pouco violentos. As
pinceladas, largas, ágeis e fugidias, limitam-se a dar-nos os tons rosados e
dourados da pele e dos cabelos. O azul do céu ou um fundo vermelho sem pretexto
são contexto que baste para o recorte dos corpos. Uma árvore oscila, de quando
em quando, para confirmar a animação do vento. A fluidez da pintura inunda a
amplitude da escala, pouco comum neste tipo de representação, cuja técnica de
execução faz pensar em aguarela, a que o autor também se dedica. É normal as
pinturas terem dos metros por dois, dois metros por três, para que ninguém
possa falar de medo ou falta de espaço.
Do muito que
se diz dever a Baselitz, de quem foi aluno durante vários anos, o artista
destaca as recomendações para não se preocupar com a técnica, e ainda menos com
os temas e discussões em voga no pequeno mundo da arte, e o estímulo para se
concentrar exclusivamente naquilo que lhe é mais pessoal. Como é habitual,
aquilo que é mais pessoal para uma pessoa acaba por nos conduzir àquilo que é
pessoal para um vasto e, neste caso, muito variado número de pessoas.
A figuração
descrita, assinada por um pintor alemão, não podia deixar de levantar a questão
do mito da «raça ariana» da ideologia nazi. Para despachar o assunto, foi este
o primeiro tópico de conversa durante um tranquilo almoço no restaurante Joe
Allen, em Miami Beach. Bisky explica que conhece bem o tema, até por razões
pessoais, já que uma avó foi activa participante nas aventuras campestres e
naturistas dos anos 30 alemães e, a seu tempo, uma também activa participante
nos crimes do nazismo. O problema está na história da família de modo tão
inevitável como na história da Alemanha.
O artista foi
ver a pintura da época nazi, que a infinita culpa e vergonha dos alemães os
continua a impedir mostrar, e diz ter encontrado uma pintura pesada, parda e
exangue, sem nenhuns pontos de contacto com o seu trabalho. Pelo contrário,
encontrou semelhanças com a pintura da propaganda soviética, que lhe chegou de
um modo mais directo e pessoal devido à infância passada na RDA, no seio de uma
família de obstinados comunistas, que nem sequer lhe pouparam a experiência de
arregimentação juvenil nos «Pioneiros».
Hitler e
Estaline. Estaline e Hitler. Qual dos dois era o mais louro e tinha os olhos
mais azuis?
A questão
fica em aberto, mas importa reconhecer que ambos ficam muito aquém dos
habitantes das praias de Santa Monica ou Malibu, em Los Angeles, ou dos rapazes
dos catálogos da Abercrombie and Fitch. Uma imagem de marca californiana, para
a qual muito contribui o trabalho fotográfico de Bruce Webber, não por acaso
muito inspirado por Herbert List e pelos ses algo alemães «Filhos do Sol».
Acertadas as
contas, de modo equitativo, com as estéticas de totalitarismo nazi e comunista
e do liberalismo democrático e, de passagem, também com uma complicada herança
familiar, Bisky sublinha que aquilo que o move não é uma lógica de crítica
ideológica ou desconstrução cultural, mas a fidelidade a um impulso e um
universo pessoais. O modelo das suas figuras é apenas um e sempre o mesmo desde
há dez anos, mas permanece irreconhecível nas suas pinturas.
Os rapazes de
Nobert Bisky quase não têm roso e os rostos quase não têm olhar, porque eles
não pertencem à teia dos negócios psicológicos. Eles têm a flutuante qualidade
daquilo que se imagina. Fiquei de ir visitar Nobert Bisky em Berlim, mas posso
desde já antecipar uma conclusão: o rapaz nunca existiu.
...................................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 18 de Dezembro 2004,
p. 48-49.
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