Rudolph Valentino. Valentino como Young Rajah, 1922. |
Bruce Nauman, Art Make-up, 1967-68. |
Art Make up (1967-68,
cor, sem som) é o título comum a quadro filmes de 10 minutos cada em que Bruce
Nauman vai sucessivamente cobrindo o rosto, o tronco e os braços com
maquilhagem de cor branca, rosa, verde e negra. As obras podem ser vistas no
Museu de Serralves, em excelentes condições de projecção, integradas na notável
exposição «Behind the Facts. Interfunktionen 1968-1975». Uma obra complementar
relevante, não mostrada em Serralves, é Flesh
to White to Black to Flesh (1968, 51 min., preto e branco, som).
Arte e
«make-up» servem de tópicos para uma especulação sobre o modo como, entre as
modas e as artes, ao longo do último século se foram transformando os modos de
produzir imagens dos rostos masculinos e sobre os efeitos mais recentes dessa
transformação no que diz respeito aos modos de construir as identidades
masculinas. Uma divagação, mesmo caprichosa e fragmentária, deve começar pelo
princípio e no princípio está o princípio do cinema e, se queremos falar da
reinvenção do rosto masculino, está aquele que foi o primeiro e até hoje um dos
melhores ícones de beleza masculina da história do cinema: Rudolph Valentino.
Cinco semanas
antes da sua morte, o «Chicago Tribune» (18/7/1926) publicava o mais violento e
insidioso de uma série de ataques que o perseguiram ao longo da sua carreira. A
propósito de virilidade, questionava-se a natureza e as proporções das
componentes estéticas e sexuais geradoras do nunca visto carisma perante o qual
sucumbiam em massa audiências femininas e não só. «Pink Powder Puff»
(designação que julgo remeter para o uso de pó-de-arroz cor-de-rosa) era o
insulto mais forte do editorial, que enfureceu Valentino e o levou a desafiar o
anónimo articulista para um combate, enquanto se defendia enaltecendo as suas
origens italianas.
Sabe-se como
o cinema, a luz do cinema e o «close-up» (o grande plano), em particular,
modificaram a moldura dos rostos humanos e, portanto, a maneira de os ver e
imaginar, com consequências imensas sobre as noções de beleza e os mecanismos
do desejo e imaginação sexual. O assunto tem sido muito estudado, sobretudo no
que diz respeito à representação da mulher. Para as variantes masculinas é
preciso começar com Valentino.
Nascido em
Itália no mesmo ano em que o cinema, em 1895, tornou-se do ponto de vista
estético e simbólico, tudo aquilo que o homem e herói americano de então não
era, não queria nem podia ser. Para além das especulações sexuais, em torno de
Valentino jogava-se, com o racismo em pano de fundo, questões étnicas
decisivas. Por exemplo, para desempenhar o papel de «sheik» árabe no filme que
o tornou uma «star» (The Sheik,
1921) pretendia-se reforçar, na imagem de Valentino, a componente exótica,
oriental, misteriosa, isto é, não ocidental. No entanto, o problema de cor da
pele foi abordado com os máximos cuidados. O «sheik» deveria ser mais escuro,
sobretudo para poder contrastar com a imaculada brancura das heroínas, mas não
podia ser realmente mais escuro, porque se receava que as audiências não
tolerassem um herói menos branco. A solução foi aplicar «make-up» branco na cara
para ninguém se assustar, sublinhar a profundidade dos olhos com «eye-liner» e
«olheiras» e guardar a maquilhagem mais escura apenas para as mãos nas cenas de
mãos dadas com a heroína. O rosto, mesmo se de um «sheik» árabe italiano, tinha
de ser cem por cento branco.
Art Make up é uma das
obras-primas de Bruce Nauman. Bem sei que se pode dizer o mesmo de dezenas de
obras dele, porque se trata de um dos mais importantes artistas vivos e de um
dos mais influentes entre os jovens artistas que ao longo dos últimos 15 anos
têm renovado a tradição das vanguardas. Diz-se até que nas escolas de arte mais
em voga cada aluno arranca uma página de um catálogo de Nauman no início do
curso e constrói toda a sua carreira sobre esse achado.
O nome de
Nauman, ainda hoje em plena actividade, está associado às experiências das
vanguardas americanas que no final dos anos 60 alargaram a noção de arte até
aos limites mais extremos em termos de radicalização conceptual e de
diversificação de técnicas e materiais. Neste contexto, as inovações no âmbito
das artes plásticas são indissociáveis de experiências contemporâneas no
domínio da literatura (Beckett, Robbe-Grillet), da música (Cage, Reich), da
dança (Cunningham, Monk), ou do cinema (Warhol).
«A
diversidade técnica e formal das obras é extremamente grande em Bruce Nauman.
Trabalha com meios como a performance, a fotografia, o filme, o holograma, o
vídeo, o desenho, a gravura, a escultura em madeira, metal, feltro, gesso,
borracha ou fibra de vidro e utiliza por vezes tubos de néon. A maneira como a
obra é transmitida ao público não é menos rica: o espectador é interpretado por
uma impressão visual, palavras, ideias, gestos, demonstrações cujo objecto é o
corpo, situações espaciais criadas pelo artista que suscitam um efeito particular
no espectador, que se transforma então em utilizador do espaço» (Franz Meyer, Bruce Nauman – Sculptures et Installations
– 1985-1990, catálogo Musée Cantonal des Beaux-Arts, Lausanne, ed. Ludion,
Bruxelles, 1991, pág. 11).
A consciência
de si próprio, experimentada e exercitada através do corpo, é um bom ponto de
partida. Embora a formulação pareça mais adequada ao campo da dança, Nauman
trabalhou-a através de performances, vídeos e filmes que, na realidade, não
desmerecem a comparação com projectos coreográficos. Art Make Up é um exemplo maior de utilização do corpo como material
de base do trabalho artístico. É a demonstração literal de uma atitude
conceptual segundo a qual a obra de arte é aquilo que o (corpo do) artista faz.
A obra, sem deixar de ter existência autónoma (os filmes), é menos o resultado
do que o (registo do) processo de fazer.
O que dá a Art Make Up um suplemento de fascínio é
o facto de aquilo que o artista aqui faz ser refazer a imagem de si próprio: é
uma espécie de auto-retrato em movimento do artista a fazer-se passar por
artista. Ou seja: a apresentar-se como e, portanto, a ser artista.
O artista
assume-se e mostra-se, do modo mais simples e radical, como autor de si mesmo,
ou actor da sua própria obra, ou suporte da sua pintura, ou ainda, se
quisermos, como manequim de uma autoprodução de moda.
O artista
apresenta-se a si próprio como obra de arte e artista. O modo como o faz é
através do disfarce e da maquilhagem, com requintes de sensualidade narcísica,
por vezes quase onanista.
Nauman (nunca
olha para o espectador deduzindo-se que olha para um espelho) abre vastas
conexões entre as artes plásticas e as artes de representação (performance, em
geral, teatro e cinema), mas também entre a definição de artista e a questão ética
do processo de construção da identidade individual através de um trabalho
criativo de autodefinição. O que está em causa é a liberdade da
auto-imaginação: chave e segredo da ideia de liberdade. Há sempre uma moral.
Em 1968, o
artista Bruce Nauman pinta-se e repinta-se, entre o preto e o branco, com todas
as cores do arco-íris, para além de todos os constrangimentos que afligiram
Rudolph Valentino.
No discurso
que assinalou uma doação de obras da sua colecção a um grande museu americano,
uma coleccionadora terá sublinhado o grande apreço que lhe mereciam as obras
históricas de «Brunce Newman».
Podemos
pensar que, nas memórias da famosa coleccionadora, a aquisição das primeiras
obras de Nauman se confundia com o inesquecível rosto juvenil de Paul Newman –
hoje disponível, numa versão mais madura, nas embalagens de uma vasta linha de
produtos alimentares. Nem todos podem ter o sublime destino de Valentino, que,
com o perfil de «sheik», adornou, durante décadas, uma das mais populares
marcas de preservativos dos Estados Unidos.
Mas também
podemos considerar que o que a expressão «Brunce NewMan» põe em jogo é a
emergência de um «newman», que hoje se banaliza com a noção de «metrossexual»,
ou as tatuagens de Beckham, mas que só começou a respirar em liberdade nas
atmosferas de 60, graças a obras como as de Nauman e Warhol. Um novo homem, que
nasceu, ao mesmo tempo que a nova mulher, em Hollywood, nos anos 20, com Rudolph
Valentino – «the one and only».
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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 28 de Agosto 2004, p. 30-31
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