Galeria A Gentil Carioca |
Na tarde do
passado dia 22 de Setembro passei pela Gentil Carioca para a abertura da mostra
de Marssares. Um jovem artista que compõe peças musicais com base em percussões
electrónicas e depois constrói caixas de som, algumas de grandes dimensões que
se transformam em esculturas autónomas. Um grande objecto, como um cilindro
irregular deitado, convida-nos a nele entrarmos e, dentro dele, sentados,
seguirmos os ritmos do autor. Um pequeno objecto, em forma de binóculos, é-nos
proposto como caixa de som para ser usado em ligação com o computador pessoal.
Um ambiente festivo, a meio caminho entre a festa de rua e a sala de estar,
entre a discoteca e a sala de exposição, é exemplo certo da maneira de ser da galeria
da Gentil Carioca.
«Carioca» é a
designação popular para os habitantes do Rio de Janeiro e um adjectivo
frequentemente associado a manifestações consagradas da cultura popular
brasileira, designadamente o Carnaval e formas musicais específicas, como o
samba. Mas a palavra «carioca», sobretudo se lhe associamos a palavra «gentil»,
assinala também uma maneira de estar que se caracteriza por uma forma de
convívio aberto, sensual e prazenteiro. A beleza do Rio de Janeiro, uma
combinação única entre a sensação de férias eternas proporcionada pela
omnipresença da praia e a forte intensidade da vida urbana, é por vezes
reduzida a um estereótipo quase caricatural mas não deixa por isso de
corresponder a uma forma específica de interacção social que todos os visitantes
podem experimentar.
É este tipo
de experiência social e cultural aberta e integradora que preside ao projecto
desta galeria inaugurada em Setembro de 2003 numa das zonas mais típicas e
populares da cidade. Uma zona de pequeno comércio tradicional, originalmente
árabe e hoje com forte presença chinesa. Comerciantes e compradores misturam-se
à porta de uma infinidade de pequenas lojas e bares distribuídos por 10 ruas
paralelas e 5 transversais em que se encontram toda a espécie de artigos,
incluindo muitos materiais utilizados por artistas como, por exemplo, Ernesto
Neto que tem o seu ateliê nesta zona e, com Laura Lima e Márcio Botner,
constitui o grupo fundador da galeria.
O espaço
físico da galeria ajuda a cumprir os seus desígnios de abertura ao exterior e
ao ambiente das ruas a envolvem. Às duas salas mais convencionais junta-se uma
sala para a qual se desce através de uma pequena escada como a das piscinas e
que tem dois grandes janelões abertos para receber os cheiros e os ruídos da
rua.
A exposição
de Jarbas Lopes que visitei em Março deste ano, e é o tema central desta
crónica, é um exemplo perfeito do espírito da galeria. Sob o título «Pintura em
Família, com desenhos e ciranda da Tia Judith», o artista juntou aos seus
próprios desenhos, um conjunto de desenhos da sua Tia Judith, de 82 anos,
realizados ao longo de inúmeros serões em família e aqui apresentados,
pendurados num varal, na sala das traseiras com o chão coberto por esteiras
para reforçar a atmosfera familiar. Por sua vez, o já referido espaço da
«piscina» foi deixado livre para os visitantes poderem fazer desenhos na
parede, que acabam por completar o significado da exposição, transformando-a
numa real expressão de um trabalho de convivência e colaboração que se alarga
do espaço da família para o espaço da galeria e do bairro circundante.
Na festa de
inauguração que, de acordo com o que é hábito na galeria, se transformou numa
festa popular que se prolongou pela noite fora, toda a família do artista se
reuniu para receber os visitantes e cantar Cirandas numa roda alimentada por
caldo de mocotó e cachaça, bebidas e comidas populares tradicionais.
Os desenhos
da Tia Judith, na melhor tradição «naïf», representam flores e motivos vegetais
com um assinalável grau de estilização. Os desenhos de Jarbas Lopes, um artista
nascido no Rio de Janeiro, em 1964, começam por nos seduzir pela sua
simplicidade. São pequenos formatos (30x20cm), desenhados a esferográfica sobre
papel, em que a marca persistente do riscar deixar sentir a intimidade da
presença física da própria mão. Não estamos, no entanto, perante esboços
elementares, frutos de uma mera intuição espontânea. O trabalho de composição,
dividindo o espaço da folha em diferentes espaços de diferentes dimensões e
procurando os ritmos adequados ao confronto desses espaços são a prova de uma
afinada consciência plástica. O mesmo se pode dizer do uso das cores, apesar do
leque limitado permitido pelo uso da esferográfica, e da forma como algumas
matrizes abstractas se conjugam com referências figurativas e com a inclusão de
palavras. Em cada desenho, a procura de um padrão de equilíbrio harmonioso é
perturbada e animada pela intrusão das marcas escritas ou figuradas do mundo
animal e urbano que sempre nos espreita, sobretudo numa cidade tão viva e
luxuriante como o Rio de Janeiro.
Uma
composição abstracta confunde-se com as formas dos olhos de um animal. Uma
bicicleta recorta-se contra as árvores e o Sol ao fundo, com um gira-discos no
rodapé. Nos três rectângulos de uma composição «à maneira de Rothko» lemos as
mais singelas saudações: «Bom Dia», «Boa Tarde», «Boa Noite».
A vocação
comunitária de A Gentil Carioca aparece-nos assim justamente servida por uma
exposição com uma sensibilidade humilde e «familiar» quase comovente.
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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 2 de Outubro 2004, p. 46
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