Adriana Molder. Arte e o Fado, Azulejo da Colecção Alma Lusa. 2005
«Povo, povo
eu te pertenço!» Esta declaração lê-se no azulejo criado por Vasco Araújo para
a colecção «Alma Lusa», uma série de 20 azulejos e CD dedicados ao fado,
lançados pelo BPI.
O que podem
dizer estas palavras, num pálido eco das mesas palavras ditas por Amália? O que
é pertencer? Talvez seja fazer parte de uma comunidade: um povo, por exemplo.
Mas o que é o povo? É um povo, o povo ou apenas povo?
Pronunciada
por uma «diva», esta declaração não é a constatação de uma entidade
preexistente (o povo que a admira), mas sim a criação, a instituição, através
das palavras que a convocam, de uma comunidade unificada pelo próprio lugar
central da «diva» em torno da qual a comunidade se congrega.
Mas pertencer
também é ser objecto de uma relação de posse, que é como quem diz ser possuído.
A questão da diferenciação entre sujeito e objecto de posse é sempre complexa
no quadro das relações humanas e mais ainda no âmbito da relação entre uma
«diva» e o seu público ou entre um artista e o seu público. A figura da «diva»,
na ópera ou no fado, é uma referência central da obra de Vasco Araújo, que
muitas vezes, tal como aqui, se apresenta como duplo da «diva». Na mesma série
de azulejos, Adriana Molder recorre também à imagem da Amália. Em poucos anos
de regular apresentação do seu trabalho, a artista conseguiu afirmar um lugar
próprio da produção imagética, constituindo uma galeria, em constante expansão,
de figuras com bem reconhecível pertença autoral.
As imagens de
Adriana Molder começam por ser identificáveis através da especificidade do
dispositivo técnico que lhes dá origem. As peculiares cambiantes texturais
permitidas pela utilização, como suporte, de papel «esquisso» aliam-se a um
processo pouco usual de aplicação da tinta-da-china com recurso a formas de
controlo de manchas aleatórias. Os tipos de transparência e a inesperada
densidade resultante destes processos criam o espaço especial, indeterminado,
em que as personagens parecem estar mergulhadas.
Estamos numa
galeria de figuras em que se combinam, os ecos da fidelidade retratísticas, a
vocação para a invenção ficcional ou narrativa e, pairando em torno de tudo,
algo que, para não lhe chamar aura, designaremos por qualidade atmosférica. Uma
atmosfera que desloca o estatuto da representação para um estatuto de memória,
onde o exercício da distância em relação ao observador se torna irreversível e,
nesse trânsito, torna inevitável e quase leve passagem de uma sombra de morte.
Todas as personagens são fantasmas, e as imagens são sempre póstumas.
Dir-se-ia, então, que tudo isto é fado e que a imagem de Amália, aqui evocada
na dupla distância de uma capa de disco, não poderia deixar de aparecer e de
ensombrar a galeria de figuras de Adriana Molder.
Vasco Araújo
e Adriana Molder, de uma modo que talvez é inevitável para qualquer português,
artista ou não, evocam Amália de dentro para fora. Ou seja, a partir de um
dentro que é precisamente o sentido de comunidade que em torno do nome de
Amália se constituiu e hoje perdura como referência mítica cujo poder em nada
se esbateu.
Uma posição
diferente em relação a Amália é a do artista italiano Francesco Vezzoli no seu
vídeo Amália Traída, recentemente
apresentado na sua exposição na Casa de Serralves.
Vezzoli tem
vindo a elaborar um sistemático e sedutor trabalho de recriação e reencenação
de figuras de «divas» e «stars» do mundo do cinema e da música, adoptando uma
atitude em que o fascínio estético se conjuga com um distanciamento «camp» e a
emoção lírica não foge aos riscos do «flirt» com o «kitsch».
O autor
começa por colocar Amália num contexto mais vasto que o do fado e as suas
circunstâncias históricas portuguesas, escolhendo para actrizes do seu filme e
veículos de evocação de Amália duas outras «stars» com outras e bem
diferenciadas origens disciplinares, culturais e geográficas: Lauren Bacall e
Sónia Braga.
Bacall, de
quem entre muitas outras coisas ninguém esqueceu o eterno: «just put your lips
together and blow», é aqui chamada a, usando os lábios de modo aliás bastante
ostensivo, ler, como quem lê episódios de uma novela ou documentário
radiofónico, sucessivas cenas da vida de Amália, escritos a partir de
informações convencionais obtidas na Internet. O tom, tal como o sorriso, é
simpático, mas construído com uma deliberada artificialidade que o aproxima da
complacência irónica. A seguir, Sónia Braga, em sucessivos «quadros vivos»
reportáveis à estética do «video-clip», vem dar corpo a imagens ilustrativas
dos diferentes momentos da carreira e vida de Amália.
É claro que
Lauren Bacall e Sónica Braga, para além de interpretarem e apresentarem Amália,
interpretam e apresentam também as suas próprias imagens e mitos, nomeadamente,
no caso da artista brasileira em Portugal, a imagem de Gabriela (da telenovela
que adaptou o romance de Jorge Amado), também ela detentora de um lugar cativo
no imaginário nacional português. Deste modo, Amália Traída desestabiliza a visão portuguesa ortodoxa do mito de
Amália e perturba o confortável sentido de comunidade que gostamos de lhe
associar. Em contrapartida, dá-nos acesso aos prazeres estúpidos e heterodoxos
de assistir a um convívio entre três mulheres, três mitos e uma multiplicidade
de personagens e memórias que entre elas se sublinham, rivalizam, entrechocam,
complementam, sobrepõem ou menorizam. À nossa confusão e fruição não falta
sequer, como o nome da obra indica, um ligeiramente desagradável sentimento de
traição à Amália a que julgamos pertencer.
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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 30 de Abril 2005, p. 62-63
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