Munteau & Rosenblum. Untitled (what has happened?). 2002. |
Munteau & Rosenblum. Untitled (The day doesn't promise...). 2003. |
Sempre que se
aproxima o Verão, desperta em mim uma tentação melancólica em que uma vaga
promessa de excitação, que se advinha já frustrada, se confunde com uma imensa
e bem familiar nostalgia em relação a coisas que nunca existiram.
Neste estado
de espírito encontrei um objecto ideal de contemplação nas pinturas e desenhos
de Muntean/Rosenblum, uma dupla constituída pelos artistas Markus Muntean e Adi
Rosenblum que, a partir de Viena, tem vindo a assegurar uma presença constante
e imediatamente reconhecível no circuito internacional das artes, graças às
suas representações de adolescentes, de acordo com os mais singelos códigos de uma
figuração aproximável das ilustrações de livros infantis.
São retratos
de jovens surpreendidos em situações de total tédio e descontracção em que uma
branda expectativa convive com uma sensação de conforto destituída de qualquer
espécie de euforia.
É uma
atmosfera de suspensão em que o suave torpor da saciedade parece ter-se
antecipado à descabida rudeza da exibição da força de vontade.
As
personagens que compõem estas cenas, compostas em tons de pastel de acordo com
harmonias quase clássicas, manifestam, nas suas poses, roupas e acessórios, uma
plena comunhão com os ideais de juventude, beleza, bem-estar e prosperidade
veiculados pelo bom gosto das melhores revistas de moda e «life-style». No entanto, a intensa leveza das cenas que congregam tão
cordatos seres humanos, modelados por uma tendencial androginia de recorte
pré-rafaelita, está talvez mais próxima da soberana placidez de algumas cenas
religiosas (que por vezes servem de referência directa aos artistas) que do
pasmo elegante de uma sessão de fotografias de moda.
A atitudes
destes jovens configura um nihilismo tranquilo em que a sensação de vazio ou de
falta que, noutros contextos, terá inspirado celebradas rebeldias e desesperos
deu lugar a uma sabedoria precoce. Uma filosofia da vida contemporânea que
prescinde de exaltações heróicas, que já sem sabem mistificadoras quando não
trágicas, para dar lugar a uma confortável amenidade que aceita a plenitude da
vida como um infinito inconsequente que se estende até ao céu a partir de um
vazio central. Aquilo que falta, aquilo que sempre falta. A menos que se
considere que a espera é sempre uma promessa. Mas de quê?
As
especulações gratuitas que aqui me permiti são legitimadas pelos textos que, à
maneira de legendas, acompanham as pinturas e desenhos dos autores e que, por
vezes sob a forma de colagens de lugares-comuns das meditações mais
quotidianas, configuram uma ética específica.
São palavras
que não sabemos se correspondem às reflexões ou à voz interior das personagens
representadas, dos autores ou de nós próprios. Por isso mesmo permitem
diferentes mecanismos de identificação e ajudaram Muntean/Rosenblum a
tornarem-se interlocutores privilegiados do meu próprio estado de espírito.
Se eu fosse
uma personagem destes quadros, a legenda do meu retrato diria que o melhor
Verão da minha vida foi o que nunca tive durante a adolescência.
Todos os
anos, quando as aulas se extinguiam, pensava ou sentia que tinha direito a um
Verão perfeito como aqueles cuja imagem inventara a partir de bocados de
anúncios a gelados, bebidas e bronzeadores, fotografias de revistas, capas de
discos e momentos de filmes ditos fúteis.
Um Verão com
grupos alegres de «teenagers», em motas e carros descapotáveis, sempre a
caminho de festas, praias e pores-do-sol, à descoberta do sabor da pele
dourada, dos lábios salgados e de outras coisas assim.
Não sei se
isto é possível fora do glorioso reino do imaginário. Em todo o caso sobraram
para mim as obras completas de escritores como Pessoa, Duras, Wilde, ou
Fitzgerald que não podem vir mais a propósito. Para não ficar o resto da vida,
como os heróis de Fitzgerald, a lamentar um Verão que nunca existiu
dediquei-me, com relativo sucesso, a coleccionar fragmentos de um Verão que,
assim, a pouco e pouco, vai deixando de não ter existido.
Entre muitos
cenários possíveis, e até para variar em relação aos bucólicos cenários mais
habituais nos Munteau/Rosenblum, escolho para mim, para efeito desta crónica, o
muito cinematográfico cenário de Los Angeles e destaco alguns itens mais
pitorescos de uma colecção pessoal que deve ser vista como um
«work-in-progress». Mas progresso em direcção a quê?
Tomar o
pequeno-almoço num terraço de madeira sobre as areias de Malibu; adormecer e
acordar a olhar para as palmeiras e pequenas ondas de Santa Mónica; ir beber
«dry martinis» ao fim de tarde a uma casa cor-de-laranja e verde de um amigo;
ir ver o pôr-do-sol com um outro amigo no ponto mais alto de uma grande mansão
secreta; fazer compras na melhor «boutique» do mundo (Max Field) e dar um salto
a Rodeo Drive; pedir um Gibson no Musso & Frank (Hollywood Boulevard);
flutuar na piscina do Mondrian antes e depois da intervenção de Philip Starck;
mergulhar e ouvir música barroca debaixo de água; dormitar na bóia cor-de-rosa
da piscina do Standard; ver os cumes dos arranha-céus reflectidos na superfície
da piscina no topo do Standard Downtown à meia-noite; ir passar o dia a passear
em Venice a ter ideias para livros que ainda não tive tempo para ir para lá
escrever; aprender a conduzir só para poder deslizar de carro pela PCH (Pacific
Coast Highway) e pelo Sunset Boulevard.
Podia
escolher outros cenários mas enumeração corria o risco de se tornar fastidiosa
e já foi cumprido o objectivo de ilustração de uma modalidade particular de
identificação com as personagens de Muntean/Rosenblum. É altura de passar à
conclusão.
Sei que o
Verão voltará a brilhar, perfeito, sobre um corpo, mas entretanto há ainda
algumas lágrimas a secar no caminho.
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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 18 de Junho 2005, p. 52-53
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