Adriana Varejão. Linda da Lapa. 2002.
A primeira vez
que Marcantonio (um amigo e galerista histórico de Adriana, pioneiro da
divulgação de arte contemporânea brasileira no mundo) me mostrou trabalhos de
Adriana Varejão pareceu-me, e não sei se ousei dizê-lo, tal era o seu
entusiasmo, que eram excessivos. Demasiado. Barrocos, pós-coloniais,
decorativos, expressivos, viscerais, antidecorativos, sexuais, multiculturais:
demasiado. Parecia-me que o trabalho de Adriana correspondia de modo demasiado
perfeito aos estereótipos da minha visão do Brasil, que, então, ainda não
conhecia. Depois viria a descobrir que o estereótipo era meu e era eu o
responsável pela sua projecção sobra a obra de Adriana. É um erro muito comum.
A primeira
vez que encontrei Adriana Varejão voltei a sentir uma impressão de excesso, mas
desta vez era uma espécie de excesso de doçura. Para me poupar o trabalho de
procurar uma palavra que acabaria por se revelar ainda menos apropriada, chama
doçura à indeterminável qualidade de sedução que Adriana transporta no olhar.
Esta paradoxal sensação de excesso haveria de longa e lentamente alastrar, até
se dissipar em tempos de convívio que se desdobraram por botequins do Rio,
lugares de música e dança, samba, choro e outros coisas de que não retive o
nome, uma casa em festa com vista sobre Ipanema, uma tempestade tropical na
floresta carioca, um estúdio cheio de saunas aberto para um jardim, um
mega-evento em Inhotim. As qualidades do olhar, portanto.
Alguém disse,
a propósito das pessoas, que os olhos são janelas da alma, ou coisa que o
valha. Tratava-se, por certo, de um mentiroso, se não mesmo um criminoso, que
com este estratagema retórico visou e provavelmente conseguiu obter ganhos
ilícitos. Os olhos só revelam a alma dos cães, até porque as pessoas não têm
alma. Quando se pensa dizer ou se diz a alguém que no fundo dos seus olhos
queremos ver ou estamos a ver um mundo inteiro, o mundo inteiro, isto é apenas
o princípio de um grande erro. No fundo dos olhos de quem quer que seja não há
nada e à superfície há apenas o reflexo do nosso olhar. Cair neste equívoco é
mais do que um erro, é um perigo.
Toda a
riqueza, a felicidade e o infinito da vida começa, está e nunca acaba dos olhos
para fora e não dos olhos para dentro. Afinal, o que é que está do lado de fora
de um olhar? O mundo inteiro, isto é apenas o princípio de um grande erro. No
fundo dos olhos de quem quer que seja não há nada e à superfície há apenas o
reflexo do nosso olhar. Cair neste equívoco é mais do que um erro, é um perigo.
A partir do
ponto de vista de Adriana Varejão, dos olhos para fora, posso deixar de
projectar os meus estereótipos sobre o Brasil, a arte brasileira, ou a arte, a
expressão ou barroco em geral.
Um corpo não
é um saco de lixo psicológico para dentro do qual se espreita através dos olhos
ou de qualquer outro improvável orifício. O corpo é carne. Nalguns casos mais
milagrosos, o corpo é carne de sol, que é carne mais saborosa do mundo.
Falemos de Linda da Lapa e de Linda do Rosário (2004), duas esculturas agora apresentadas no CCB
(numa mostra antes vista na Fondation Cartier, em Paris) que, tendo origem na
anterior série dos «charques», fazem referência ao desabamento, em 2002, no
Rio, de um hotel vocacionado para encontros sexuais.
O espaço
revestido de azulejos que estas obras nos sugerem não é um espaço virtual,
neutro, separados do mundo. É um espaço que nos remete para situações
concretas: um talho, um bar, uma cozinha, uma casa de banho, um hospital, ou,
aqui, um hotel. O espaço social, o espaço doméstico e o espaço íntimo fazem,
assim, a sua entrada no espaço da arte. São espaços em que o corpo deve estar
contido e protegido, do mesmo modo que os azulejos protegem uma parede e esta, por
sua vez, circunscreve a estrutura de um edifício. O objectivo seria manter o
corpo sob controlo. Mas este objectivo é inviável.
O trabalho de
Adriana Varejão demonstra que não é possível ocultar o corpo. Em todos estes
trabalhos, o rebordo lateral das superfícies pintadas toma a forma de uma larga
massa de carne que extravasa todos os limites. A obra surge como uma imensa e
monstruosa sanduíche de carne em que as paredes ocupam a posição das fatias de
pão. A extraordinária presença desta massa de carne é o verdadeiro
acontecimento maior destes trabalhos. O acontecimento em que se inscreve o
nosso espanto e a nossa excitação, o lugar do escândalo e do fascínio. O que é
esta carne? De onde vem esta carne e o que está aqui a fazer?
A carne é,
antes de mais, a carne de um corpo. Tal como sucede nas pinturas com fendas, a
autora inscreve o corpo nos seus trabalhos, não sob as formas figurativas
tradicionais, mas do modo mais directo e ostensivo: a exibição da incontrolável
explosão da carne.
A demarcação
em relação aos estereótipos de representação do corpo toma frequentemente, na
obra de Adriana Varejão, a forma de desconstrução dos modelos colonialistas de
representação dos povos subjugados. Neste sentido, a carne é também, num
sentido metafórico, a carne de uma comunidade social específica: as populações
subjugadas do Brasil colonial e contemporâneo e as correspondentes formas
culturais populares, em que a expressão corporal tem um papel destacado (dança,
música, Carnaval). A presença da carne torna-se, assim, a expressão da
espessura de uma experiência histórica.
Finalmente, a
carne é ainda – e inscrevem-se aqui as especificidades femininas ou feministas
da obra da autora – a expressão da irredutibilidade de uma memória e de uma
experiência pessoais, biográficas, através das quais se manifesta a autonomia
de uma afirmação autoral.
................................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 12 de Novembro 2005,
p. 54-55
|
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.