James Coleman. horoscopus. 2004/05. ©MNAC.
Conta Jonas
Mekas, pioneiro do cinema «underground» americano, que quando Stan Brakhage, um
outro pioneiro, viu pela primeira vez o filme Sleep, de Andy Warhol – que mostra durante seis horas John Giorno a
dormir -, a sua reacção foi muito negativa. Surpreendido, Mekas descobriu que o
filme fora projectado em 24 em vez de em 16 imagens por segundo. Corrigida a
velocidade, Brakhage repetiu a experiência e confessou que uma visão do mundo
completamente nova se tinha manifestado perante os seus olhos.
O tempo, a
temporalidade da percepção, a modificação do ritmo narrativo e a mudança do
regime de relação entre o observador e o objecto artístico são questões
cruciais do cinema de Warhol, do cinema de «vanguarda», em geral, e de todas as
experiências envolvendo a imagem projectada no terreno das artes plásticas desde
os anos 70 até hoje.
Nome maior
neste contexto é o de James Coleman, um artista irlandês de que o Museu do
Chiado apresentou uma exposição que é já uma das mais importantes da temporada.
A exposição combina uma dimensão retrospectiva com a apresentação de uma obra
em estreia mundial: horoscopus (2004/05).
É uma
exposição cuja visão requer tempo. Mais tempo e uma relação com o tempo
diferente daquela a que estão habituados os visitantes de exposições. A simples
visão das obras, pelo menos duas vezes, requer duas visitas de, pelo menos,
duas horas. Estaríamos próximos da experiência do cinema, mas o modo de
circulação do observador é diferente. É a diferença entre as cadeiras da
plateia de uma sala de cinema e uma sala de exposições que acolhe imagens e som
e na qual se circula livremente.
A digressão
pela obra do autor reúne sete peças, desde as históricas Pump (1972) e Playback of a
Daydream (1974) até obras de «maturidade», com destaque para Lapsus Exposure (1992/94) e Charon (MIT Project) (1989), uma notável
reflexão sobre a natureza da fotografia enquanto «media» e a complexidade do
seu lugar estético e politico na sociedade contemporânea.
A nova obra –
horoscopus (2004/05) é composta por
dois monitores de televisão, dispostos lado a lado, que exibem, quase sempre,
imagens de pessoas em diálogo. Por vezes, a imagem ocupa todo o ecrã,
geralmente em «close-up». Outras vezes, o ecrã aparece dividido em quatro, cada
janela mostrando uma imagem diferente ou nenhuma imagem. As colunas de som,
instaladas a meio da sala, permitem ouvir, com uma clara separação, os sons das
conversas, umas em inglês, outras em francês, correspondentes a cada televisor.
Esta obra
deve ser abordada não apenas na perspectiva da história do uso da imagem em
movimento pelas artes plásticas (Bruce Nauman, Dan Graham ou Vito Acconci) mas
também da história do cinema e suas relações com o vídeo e a televisão. Para
isso, é relevante, por exemplo, o confronto com Godard e as suas experiências
na área do vídeo (como France Tour
Détour Deux Enfants), ou com o cinema de Marguerite Duras, em que a relação
indivíduo/actor/personagem (L’Homme
Atlantique) e as relações entre banda-imagem e banda-som (India Song/Son Nom de Venise dans Calcutta
Désert) atingiram um rigor e radicalidade ainda hoje difíceis de superar.
No ecrã, no plano em negro, lê-se repetidamente a palavra «loss» (perda), que
poderia ser um outro título desta obra e evoca uma das ideias fortes da obra de
Duras num texto que parte da crítica ao cinema vulgar: «Plus la peine de faire votre
cinéma. Plus la peine, Il faut faire le cinéma de la connaissance de ça: plus
la peine. Que le cinéma aille à sa perte, c’est le seul cinéma. Que le monde
aille à sa perte, qu’il aille à sa perte, c’est la seule politique» (Le Camion, Minuit, 1997, pág. 74).
A sequência
de horoscopus dura cerca de uma hora
e está dividia em seis segmentos, pelos quais passam duas personagens
principais e algumas figuras secundárias. Os conteúdos de cada segmento são, de
modo sucinto, os seguintes: uma mulher jovem fala com a protagonista sobre a
relação desta com um homem, enquanto dois homens, um deles o protagonista,
falam sobre a relação deste com uma mulher; um homem planeia com o protagonista
o encontro com uma mulher; um casal de jovens namorados confronta a protagonista;
o protagonista move-se como um cego à procura de alguém; os dois protagonistas
falam sobre a razão que a terá levado a deixá-lo; os mesmos falam sobre as
dificuldades da sua relação.
A maior parte
das cenas tem lugar no que parece ser um armazém abandonado, com algumas
paredes cobertas por graffitis, executados por uma figura só visível de modo
fugidio. Talvez seja apenas uma coincidência o facto de a forma mais típica do
graffiti (a «assinatura» personalizada/pseudónimo) ser uma das formas mais visuais,
sintéticas e extremas de reivindicação de uma identidade.
A telenovela,
a forma hoje mais omnipresente de ficção narrativa com pretensões realistas,
centrada em questões sentimentais, é a referência cujo confronto com esta obra
de Coleman se impõe de modo mais óbvio. Aliás, a telenovela foi uma referência
frequente no trabalho do autor.
Somos
confrontados com actores que, no âmbito de uma admirável trabalho de
improvisação a partir de uma estrutura fornecida por Coleman, falam
obsessivamente dos seus encontros, desencontros, expectativas, angústias e
decepções amorosas. Este é o principal ponto de coincidência com o discurso
telenovelesco. A partir daqui, Coleman procede a um sistemático processo de
subversão e distanciamento em relação à linguagem televisiva. O tom da
representação não é o naturalismo piegas típico da telenovela, mas o tom
granuloso e sofrido típico, por exemplo, do chamado cinema social britânico. O
facto de quatro das oito câmaras digitais utilizadas terem sido colocadas no
próprio corpo dos actores transmite às imagens um inquietante acréscimo da
proximidade física. Uma desolada afiliação, por vezes próxima da asfixia,
percorre todas as cenas. Não temos a imagem nítida e asséptica própria da
higiene televisiva, mas sim uma imagem sempre instável, suja, descentrada, que
a todo o momento põe em causa a nossa capacidade de ver tudo, continuar a ver,
ou perceber de modo claro o que se está a ver.
A
demonstração das limitações ou da impotência da nossa visão e a sua afirmação
como dado maior da experiência estética e moral da contemporaneidade é, de
resto, uma das lições não só deste trabalho como de toda a obra de James
Coleman.
A dificuldade
de ver transfere o ónus da identificação da mensagem e da caução da
autenticidade para a banda sonora, ou seja, para as vozes. O que as vozes nos
dizem, aqui de modo explícito e insistente, é que as pessoas por mais que olhem
umas para as outras, nunca se conseguem ver tal como são e que isso implica o
risco de catástrofe de qualquer relação humana.
Podemos ver e
rever esta obra como quem lê sucessivos horóscopos à procura de qualquer coisa:
uma palavra, uma hipótese, um alívio, que permita continuar a inventar uma
história, ou seja, continuar a viver.
Não existe
nenhuma identidade essencial (natural, pré-alienação) que seja possível
descobrir ou liberal e, portanto, não existe nenhuma verdade absoluta nos
sujeitos a partir das quais se poderia construir uma história verdadeira, certa
e acabada de uma relação entre eles. Só existem fragmentos de imagens que
correspondem a visões sempre incompletas, instáveis e descoincidentes. É por
isso que todas as histórias de amor são complicadas: porque não são apenas
histórias e, no entanto, não podem deixar de ser histórias. São reais e são
ficções. São o espectáculo do real.
Ao contrário
do que pensam os moralistas reaccionários, herdeiros de salvíficos
totalitarismos, isto não é uma consequência da perversidade do capital ou da
sociedade do espectáculo, mas sim a condição imanente do exercício da liberdade,
da imaginação, da vida em sociedade. O espectáculo é, e sempre foi, a única
forma real da vida. É por isso que o espectáculo tem de continuar. Na via de
uma pluralidade libertária, desestabilizando e multiplicando os estereótipos,
através da proliferação das ficções, da diversificação das ilusões e da
intensificação dos sentidos. A via da perdição é a única salvação.
...................................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 26 de Fevereiro 2005,
p. 38-39.
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