Doglas Gordon e Philippe Parreno. Zidane, A Portrait of XXIst Century. 2006.
Uma atitude
optimista assume que todos queremos a letra A, primeira e inaugural: «Top of
the list, king of the hill / A number one» (New York, New York). Lembro-me de ouvir Laurie Anderson dizer que o
problema era todos quererem ser 1 e ninguém querer ser o 0, o que, na melhor
das hipóteses, é uma maneira tristonha de não dizer que o problema é haver quem
não queira ser 1 e não se importe de ser 0. Mas isto é uma questão política.
Falei em A
porque quero falar em Z. A última letra do alfabeto tem o acréscimo de potência
que lhe advém de, sendo uma última oportunidade, concentrar a energia do ajuste
de todas as contas que ficaram por fazer desde o já longínquo empalidecimento
da auro do A.
Houve um
tempo risonho em que as tardes de domingo da televisão eram animadas pelas proezas
de Douglas Fairbanks, o senhor da espada que desenhou o mais belo Z da história
do cinema e da Humanidade. Falo de The
Mark of Zorro (1920) e Don Q, Son of
Zorro (1925).
Doug é o
modelo positivo do herói prometido à glória do século XX que então nascia em
Hollywood: «Ninguém conseguiu retomar a frescura, o sentido de um perpétuo narcisismo,
inocente e adolescente, que Douglas Fairbanks trouxe para os ecrãs» (Richard
Schickel, His Picture in the Papers,
Charterhouse, New York, 1973). Tudo era apenas alegria e «tudo era apenas a
capacidade de usar o corpo inteiro para manifestar carácter, atitude e emoção»
(Jeanine Basinger, Silent Stars,
Knopf, New York, 1999).
Quase cem
anos depois os artistas plásticos Douglas Gordon e Philippe Parreno realizaram
sob o signo da letra Z um filme a que deram o subtítulo «A Portrait of the
XXIst Century» (Um retrato do século XXI).
Vi pela
primeira vez este filme em Maio em casa de Douglas Gordon em Nova Iorque.
Conversámos e resolvi esperar para o ver ao vivo, em Junho, no magnífico
estádio de futebol de Basel. Entretanto, fui ouvindo opiniões: em Cannes,
Jean-Michel Frodon, director dos «Cahiers du Cinéma», dizia-me, sem má vontade,
que o filme não se aguentava enquanto «cinema». Por fim tive ainda que esperar
pela diluição dos efeitos do Mundial de Futebol, já que o Z deste filme é o Z
de Zinédine Zidane.
Os autores
filmaram com 17 câmaras (35mm, alta definição) o corpo de ZZ durante toda a sua
prestação num jogo do Real Madrid realizado em Madrid a contar para o
campeonato nacional de Espanha.
O filme é uma
das primeiras obras-primas do novo século, fundamental para o questionamento do
actual devir das práticas artísticas, e desloca a obra de Douglas Gordon para o
mais elevado nível de ambição.
Registe-se o
cruzamento entre a história da artes visuais e do cinema, entre as referências
eruditas e o espectáculo popular de massas, entre registo documental e
narrativo, entre filme e televisão. Note-se a experimentação técnica em termos
de filmagem, montagem e banda sonora. As possibilidades de análise são imensas.
Começo pelo
subtítulo que tem um duplo significado e permite colocar duas questões: como é
que se pode, se é que se pode, fazer o retrato da realidade de hoje? Como é que
se pode, se é que se pode, fazer, hoje, o retrato de alguém?
O filme
coloca a hipótese de ser, ele próprio, um retrato do século XXI (intenção que
se torna clara no uso do texto e nas imagens do intervalo) e leva-nos a
perguntar se é possível produzir imagens eleitas capazes de elaborar um ponto
de vista específico, autoral, sobre um mundo que é já ele próprio conjunto de
imagens. (A mesma questão é colocada de uma outra maneira e com uma outra
resposta, que analisaremos noutra ocasião, no admirável filme Diários da Bósnia, de Joaquim Sapinho.
O futebol faz
aqui o papel de mundo: o real, como se costuma dizer. Para quem gosta de
futebol este filme é a realização de um sonho que todos alimentamos sempre que
vemos, ao vivo, um jogo de futebol. Vivos na moldura do estádio à volta do
relvado não podemos ver, em rigor, nem rostos, nem sorrisos, nem suor nem quase
gestos. Também não podemos ver o todo porque não há todo se não o que se
dispersa pelos quatros cantos do horizonte onde as tentações do olhar nos fazem
andar quase sempre um pouco atrasados atrás da bola, que afinal nem se vê bem
se entra ou não entra. Um jogo de futebol ao vivo é menos uma experiência
visual do que uma experiência sensorial e social total. Um jogo de futebol ao
vivo é como a vida ao vivo. Nunca se pode ver nem perceber, rigorosamente, nem
tudo nem nada.
Sentimos o
que nos calha com o fulgor possível, pensamos um pouco e adaptamo-nos mais ou
menos ao movimento dos corpos nos tempos que nos cabe.
O contrário
destas impossibilidades (quem tem a sua positiva contrapartida de euforias
comunitárias no que se passa a propósito do que se passa no relvado) seria uma
experiência da omnividência que só as câmaras permitem simular. Este filme é
uma concretização desta utopia disfórica através da focalização exclusiva do
corpo de um jogador. O processo de selecção realizado através da filmagem e montagem
produz um fio condutor: o corpo de Zidane, impossível herói de uma improvável
narrativa.
Chegamos aqui
à segunda questão: a possibilidade contemporânea do retrato, na acepção que a
tradição artística lhe atribui de representação unívoca e pacífica de um
sujeito que assim se consagra. Douglas Gordon escolhe o seu herói, como se
impunha, num dos espectáculos que mais fascinam as multidões de hoje: o
futebol.
Sobre a
questão do herói, cito um breve texto inédito escrito por Douglas Gordon
aquando da sua passagem por Lisboa, em Junho passado:
«Nothing
existed before ‘Adam’ and nothing after. No future, no past, heroes where
always what was needed ‘how’. Call Superman ‘now’. Not yesterday, too late. Not
tomorrow, too need...». («Nada existiu antes de ‘Adão’ nem depois. Nem futuro,
nem passado, heróis sempre foram o que foi necessário ‘agora’. Chamem o
Super-homem ‘agora’. Não ontem, é demasiado tarde. Não amanhã, não será
preciso...»).
Hoje, como o
filme nos mostra, o retrato só pode ser um retrato em movimento, os pontos de
vista têm de ser muitíssimos e o retratado está sempre no meio de uma parada de
gentes e acontecimentos. O sujeito precisa de ser isolado, para que o retrato
tenha sentido enquanto retrato, mas a operação faz o retrato perder o sentido que
só o contexto lhe daria. O sentido do retrato de um ser individual acaba por
ser a falta do que perder para poder ser retratado, isolado. Parece um paradoxo
mas parece-se ainda mais com o estatuto contemporâneo da identidade individual.
A forma como
Zidane é recortado e separado do contexto do jogo, cujas peripécias se tornam
quase incompreensíveis, conjuga-se com o seu comportamento glacial, como que
indiferentes ao que o rodeia, sem risos, lágrimas ou afeições comunicativas.
Vendo-o arrastar as chuteiras no relvado, recordamos a figura radical e
solitária do matador, sozinho em frente do touro ou, segundo alguns
especialistas, da morte. Reparando na indiferença como que se afasta ou desvia
o olhar do pólo de acção em que se decide o destino da jogado que ele próprio
incitou, mas onde já não tem nada a fazer, lembramos o cowboy solitário que se
afasta em direcção ao deserto abandonando a festa no povoado que ajudou a
salvar. Imaginamos um herói trágico que vence batalhas mas não se consegue
salvar. Fim do jogo. Fim de carreira. Fim. Eis o homem que perdeu. A conclusão
deste filme, confirmada pela violência do gesto conclusivo da carreira de
Zidane, desenha a terrível imagem de um anti-herói contemporâneo: um herói
negativo para o século XXI.
Por esta razão
e por todas as outras razões este texto é dedicado a Ronaldinho Gaúcho e às
rulotes da Catedral.
...............................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa.
|
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.