IGOR JESUS


ARTFORUM
Fevereiro 2016


©António Jorge Silva



O modo como IGOR JESUS  concebe uma exposição ( e o modo como podemos compreendê-la ) começa por uma aproximação global ao espaço de exposição no sentido de determinar o processo de transformação a que ele deve ser sujeito para servir os seus objetivos. Neste caso, o desafio é considerável já que se trata da primeira exposição do artista numa galeria que tem um dos maiores espaços contínuos numa galeria privada em Portugal e que, pela primeira vez, sofreu uma alteração estrutural.

À entrada, o artista construiu uma black box onde é projetado, em loop de 31’57’’,  o video que dá o título à exposição : “A última carta ao Pai Natal”. Antes de entrar na luz habitual de uma sala de exposição, o visitante tem de passar (e parar) na escuridão. Adiante veremos o que significa esta passagem. A completar o processo de transformação da sala vemos, ao fundo, o que parece ser uma parede, em posição oblíqua em relação à parede, quase bloqueando o acesso ao último terço da sala. Na verdade é uma pintura monocromática cinzento-azulado (como um céu muito carregado ?), composta por vários paineis com uma dimensão total de 8 metros de comprimento por 3,30 metros de altura. Chama-se “De costas voltadas” (2015). De trás da parede/tela chega-nos o som, que ecoa por toda a galeria, do que depois descobriremos ser um video apresentado num plasma, free standing num plano inclinado e numa posição vertical (POV, video, loop, 1’42’’, 2015).

A exposição fornece-nos a sua chave logo no início mas só no final a entenderemos. Voltemos então à sala escura da entrada. O video alterna imagens de travelings verticais ascendentes e descendentes sobre uma superfície negra com visões rente ao chão do interior de salas de estar domésticas. O ponto de vista é, portanto, o do Pai Natal, subindo e descendo chaminés, para encontrar salas sem pessoas nem nada que indicie a intenção de o acolher. O Pai Natal (a câmara) volta a subir por onde desceu. As filmagens são reais e foram feitas sem autorização dos proprietários ou ocupantes das casas.
Estamos agora preparados para entrar na sala de exposição. Na parede, três trabalhos fazem racord com o video. Poderiam parecer pinturas abstratas negras (a escuridão da fuligem no interior da chaminé ?) mas são impressões de imagens resultantes do corte, colagem e digitalização de polaroids vazias, negras (“Polaroid”, 185x124 cm, 2015).

No espaço que vai até á superfície azul do fundo encontramos no chão um pequeno círculo formado pelos destroços de seis velhos sapatos e ténis cozidos uns aos outros (“Domingo”, 30x26x26 cm, 2015). À parede em frente às polaroids, está preso um pequeno copo invertido cuja transparência é toldada por marcas de resíduos de vinho tinto. Será que, nalgum momento auspicioso do passado, ocorreu uma celebração ?
Por fim, a imagem do video que encontramos atrás da parede/tela mostra-nos, em loop, a queda de uma caixa de som (filmada de frente por uma câmara a ela acoplada) até se estatelar no chão. Temos a visão e o som concretos de uma queda cujo sentido abstrato, talvez para evitar especulações religiosas, é deixado ao livre arbítrio de cada visitante.

Na tradição católica portuguesa quando se aproxima o Natal diz-se às crianças  para escreverem ao Pai Natal ( algumas décadas atrás estas cartas eram dirigidas ao Menino Jesus, o que no caso de Igor Jesus teria tido um efeito ainda mais perturbante ) a pedir aquilo que desejam. O artista contou-me que, na sua última carta ao Pai Natal, pedia-lhe que o levasse com ele. Mas não vamos entrar em especulações biográficas. O pai, o nascimento, a família, a queda, são temas suficientemente gerais para dispensarem exemplificações. Deixemos a cada um a escolha do seu “Point Of View”.

O que mais impressiona, na obra de Igor Jesus, é a capacidade de abordar temáticas da maior intensidade subjetiva e emocional conseguindo evitar as armadilhas da psicologia ou do lirismo vulgares. Pelo contrário, o artista procede através de um rigoroso processo de reversão/ocultação do espaço físico de exposição (como se lhe estivéssemos a ver as “costas”) e através de operações formais de contenção, redução e subtração extremas na construção e seleção dos objetos expostos.

........................
Texto publicado na revista mensal Artforum, na edição de Fevereiro de 2016, por ocasião da exposição “A última carta ao Pai Natal”, de Igor Jesus, na Galeria Filomena Soares, Lisboa, 2015. 

EM LOS ANGELES


Ed Ruscha, A Particular Kind of Heaven, 1983. Oil on canvas


Agora que penso nisso reparo que Los Angeles é exactamente o sítio onde a Beleza tem sido produzida desde há, pelos menos, mais de meio século. Nem Florença nem Milão, não, Los Angeles, L.A., Beleza com B grande. Não a verdadeira beleza, claro, a verdadeira beleza não existe. A Beleza pura e simplesmente: Hollywood, Beverly Hills, Dinheiro, Sexo, essas coisas com que os forasteiros sonham e à volta das quais L.A. vive. Sabemos, evidentemente, que tudo isto é uma ilusão, uma mentira, uma fraude, nada mais do que a matéria com que são feitos os sonhos.

O que eu quero dizer é que quando começamos a pensar em L.A., começamos a lidar com um estereótipo, um clã de estereótipos. É inevitável. Assim sendo, o melhor é fazê-lo de uma modo aberto, directo. É o que eu tenho tentado fazer com L.A. Provavelmente não quero que a minha relação com a cidade seja crítica ou desconstrutiva. Nem estou certo que ela pudesse sê-lo. E porque é que a minha relação com L.A. deveria ser crítica? Ou porque não?

O que eu julgo ser realmente possível é jogar o jogo das distâncias, pôr em cena um processo de distanciação.

Poderia dizer que este é o tipo de jogo que, pelo menos desde a pop art, tem sido jogado entre a arte – as artes plásticas, a arte contemporânea – e a cultura popular de massas, em geral.

Na sequência de um convite para organizar a exposição anual estudantes de artes plásticas da UCLA – Universidade de Los Angeles – pude apreciar o modo aberto e directo como muitos estudantes lidam com noções de beleza, medo, angústia, glamour, tal como elas se manifestam incorporadas em imagens de rostos, corpos, edifícios, ruas, objectos do quotidiano, heróis cinematográficos. Alguns estarão mais próximos dos estereótipos e dos lugares comuns. Alguns outros são mais elaborados e sofisticados. Alguns enfáticos. Mas, provavelmente, todos nós estamos condenados a parecer demasiado qualquer coisa na nossa relação com os estereótipos que formam o nosso incontornável horizonte cultural. Isto faz parte dos riscos que corremos quando aceitamos jogar o jogo das distâncias.

A maioria dos estudantes com que falei encara o seu trabalho de um modo conceptualmente lúcidos mas descomplexado, pessoal mas comprometido com as imagens do mundo em redor, intenso mas descontraído. Creio que tudo isto faz parte da atmosfera aberta característica da UCLA.

Na minha conversa com os estudantes e as suas obras, no processo de trabalho conducente à organização da exposição, procurei não impor antecipadamente os meus pontos de vista, nem o meu universo pessoal de referências, mas estou certo que não pude evitar as implicações da minha particular relação com a cidade e os seus – meus – estereótipos.

No paragrafo anterior, a palavra mais importante é a palavra “conversa”. Provavelmente, é uma das melhores designações possíveis para o real conteúdo do trabalho de um organizador de exposições ou de um crítico de arte. Por conversa entendo um interminável work in progress. A exposição que inaugurou a 20 de Novembro 1998 na New Wight Gallery da UCLA ou este texto – que é uma tradução parcial adaptada do texto que escrevi para acompanhar a exposição – são momentos de um processo em curso, uma conversa interminável. O jogo continua. Com quantos destes artistas voltarei eu a falar? E em que situações?

...............................

Alexandre Melo, “Em Los Angeles”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº21,  Lisboa, Fevereiro 1999

PAPÉIS



Robert Wilson. Drawings from The White Raven. ©Paula Cooper Gallery



Chega a ser irritante. Há pessoas que pegam numa folha de papel e...pronto, diriam alguns, fazem milagres. Fazem o que querem. Já está. Chega a ser irritante. Robert Wilson é um exemplo.

Olhem para os desenhos da série White Raven, relacionados com a ópera com o mesmo título, e expostos na Galeria Luís Serpa, em Lisboa. Quem já viu Robert Wilson desenhar sabe a certeza, a segurança, a energia. Não, não é uma inspiração. É método, mas é o método de um génio. Se quisermos continuar a utilizar a palavra génio.

A folha de papel é branca, bidimensional. Robert Wilson traças as linhas que quer. Elas serão os eixos que ordenam o espaço – a arquitectura. Robert Wilson distribui os cinzentos, os brancos, os negros, define os pólos que ordenam a visão – a luz. Tudo o resto vem, por acréscimo, povoar o espaço, ocupar o seu lugar, num mundo previamente definido pela arquitectura e a luz.

É mais que um método, é um sistema. As figuras, as coreografias, os sons, os detalhes, depois, podem ser cronometradas até ao milímetro, ao segundo, meio milímetro, meio segundo, para um gesto, um dedo, um ruído, uma palavra, meia palavra. Robert Wilson sabe fazer exactamente o que faz e por isso pode fazê-lo perfeitamente.

Há outros casos. Não muitos, confessemos.

É sempre extraordinário ver uma nova série de trabalhos de Paula Rego. Neste caso, refiro-me a um conjunto de trabalhos sobre papel: estudos para os figurinos do bailado Pra Là e Pra Cá, inspirado nas gravuras de Paula Rego sobre canções infantis inglesas, as Nursery Rhymes. Trabalhos vistos na Galeria 111, em Lisboa.
O que é extraordinário? É ver aquilo acontecer outra vez em frente dos nossos olhos. Outra vez a mesma coisa. Como se diz em expressões como: quando ela se põe a olhar com aqueles olhos, quando ela sai da casa com aquele ar, já se sabe, aquilo vai acontecer outra vez.

Mas aquilo o quê?

São desenhos que começam por ser simples. Personagens, figurinos, adereços, confrontos de personagens, pequenos grupos. Começam assim e ,depois, à medida que vamos olhando melhor, vem o mundo inteiro.
Paula Rego leva-nos outra vez para dentro daquilo, daquele mundo. É como quase se cai nos buracos dos sonhos dos filmes de terror que, bem vistas as coisas, não são bem de terror.

Lá estão todas aquelas figuras que ela nos foi ensinando a considerar familiares, famílias muito especiais, como as dos filmes de Tod Browning: os bons, os maus, os bonitos, os feios, os péssimos, os incorrigíveis, a vergonha e a pouca-vergonha, as mãos fechadas, as caras fechadas, as pernas fortes, os braços fortes, os cabelos, a pele, os pêlos e as penas. Desta vez, uma pequena orgia de pelagens: insectos, pássaros, pessoas, coisas de se lhes passar a mão pela pele, como a pintura sobre o papel.

Paula Rego, assim, sem mais nem menos, põe ao nosso dispor um mundo inteiro. Parece fácil, assim como quem passa a mão, a tinta, sobre uma folha de papel. Mas, na realidade, na verdade, é o trabalho de uma vida inteira. É a isso que se chama um mundo. Mundo. Quase ninguém consegue.

..................

Alexandre Melo, “Papéis”, in Arte Ibérica, Ano 3, Nº20,  Lisboa, Dez / Jan 1999

PARA RUI CHAFES, EM 1988



Rui Chafes. “Vertigem V”. 1988/89. © Fotografia: Blue Photography Studio (Cepeda)


A palavra arte deve ser associada a intransigência. As coisas que faça o que se chama artista têm de ser a prova de uma inteligência, sentimento, vontade, paixão, obsessão. As coisas que faça o que se chama artista servem para dar mais perplexidade e expectativa a uma presença, mais riqueza e complexidade a um problema, mais inteligência e densidade a uma cumplicidade, mais intensidade e necessidade a um sentimento. Em linguagem muito simples: servem para tornar excepcional a relação com as coisas, as imagens das coisas, isso a que se chama mundo ou os outros. Ou ainda, em linguagem menos singela: demonstrar a coincidência do belo, do bem, do útil e do verdadeiro.

A consciência ou o sentimento de excepção e intransigência estão antes de qualquer produto ou produção.

Inevitável característica das primeiras obras de um artista: serem as primeiras, um mostrar-se a crescer, como mostrar o próprio corpo a crescer. Saber dos perigos, confrontar o medo, defender o segredo sem desistir de o entregar ao mundo.

Um artista novo reconhece-se no impulso generoso para revelar o segredo de ser o portador de um novo segredo. Tem de gerir o medo e a coragem para não ficar aquém da revelação. Tem de guardar pudor e recato diante das circunstâncias para não se estragar. Precisa de uma enorme arrogância para não ser confundido com outro qualquer e precisa de se manter perfeitamente vulnerável, diante de todos, para que os que serão o seu destino o reconheçam e acolham sem suspeita.

O segredo de que o artista novo é portador mantém estreitas relações com a revelação de um corpo que sabe de certeza sentida que está a crescer em amor, mas não sabe como bem porquê nem para quê.

Os objectos do artista não são perguntas, nem respostas, nem comentários. Afastam-se das formas dos objectos comuns não apenas para não poderem ser confundidos com eles mas para não poderem ser vistos segundo os usos de veros objectos comuns. Afastam-se das formas abstractas consagradas para que ninguém pense que uma forma bem acabada pode alguma vez constituir, só por si, um motivo válido de satisfação. Afastam-se da escala razoável e ameaça nas conveniências dos sítios que as acolhem para que seja notório que não são razoáveis e não buscam nem o seu próprio confortável equilíbrio nem uma equilibrada harmonia com as paredes e os olhares que as rodeiam. Têm a escala explodida do que é, tem de ser e não pode ser. Dão conta de uma instância originária puramente abstracta, fonte de uma energia decisiva. Cumprem-se num trabalho expansivo e excessivo de desocultação e construção: do fechado ao aberto, da intimidade à exposição, da unidade à proliferação, da luz e da cor protectoras à claridade sem dó. Uma obra. Um corpo de destemor e amor oferecido e abandonado ao mundo.

In Catálogo exposição “Espaço Poligrupo”, Renascença, Março de 1988


.......................

Alexandre Melo, “Para Rui Chafes, em 1988”, in Arte Ibérica, Ano 5, Nº42,  Lisboa, Dez / Jan 2001


EFRAIN


O Observador. 1997.


O trabalho do jovem artista brasileiro Efrain Almeida tem podido ser visto regularmente em Portugal na Galeria Canvas, no Porto. Aqui, falamos de uma exposição recente na Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo.

A montagem da exposição assenta numa relação de simetria entre os trabalhos expostos nas duas paredes que se opõem frontalmente. De cada uma delas irrompem dois pequenos colibris, captados de asas abertas, como que em pleno voo. Dos seus pés partem longos e finos fios vermelhos de canutilho, que descem até ao chão e depois se estendem pelo solo até ao centro da galeria.

Estes fios, ao mesmo tempo que unem cada um dos pares de aves, traçam, no chão da galeria, o contorno vermelho de dois desenhos que quase se tocam. São estes fios que transformam cada par de pássaros num verdadeiro par: lado a lado, unidos por um fio de sangue ou por um fim de alegria. O simples desenho delineado no chão consegue mobilizar todo o espaço da galeria, envolvendo o espectador e conduzindo o seu olhar e os seus passos.

As manchas que as linhas desenham são como as sombras de um voo que os pássaros, presos à parede, não podem soltar, mas conseguem, deste modo, sugerir. Ou como os limites das margens de dois lagos que, no chão da galeria, tanto podem ser uma evocação da natureza, como a evocação de um lago de puras emoções.

Os pássaros, tal como as outras esculturas apresentadas na exposição, são de madeira (cedro) esculpida à mão. No trabalho de Efrain Almeida é nítida a influência do artesanato popular característico da sua região de origem – o sertão do Ceará, no Norte do Brasil – e da sua tradição familiar – o pai era carpinteiro e a mãe costureira. A qualidade oficinal do trabalho transmite-lhe uma excepcional sensibilidade matérica e textural – uma sensibilidade ecológica, poderíamos dizer –, que torna estas esculturas simultaneamente simples e sofisticadas, poderosas e vulneráveis. Nelas encontramos o eco da modelação infantil de brinquedos artesanais, mas também da estatuária religiosa popular – extremamente rica no Brasil – e particularmente dos ex-votos.

No entanto, aquilo que é decisivo nestes trabalhos, e lhes dá a sua marca distintiva e a sua originalidade no riquíssimo panorama cultural da arte brasileira, é a capacidade de Efrain Almeida para superar aquilo que poderia ser uma mera adaptação de tradições ou referências locais, e conseguir dotar a sua obra de uma intensa carga dramática e pessoal. A obra de Efrain é um notável exemplo de uma articulação entre “arte erudita” e “arte popular” que, não pretendendo submeter uma à outra, e rejeitando esta antinomia, acaba por se conseguir afirmar, de um modo plenamente criativo, enquanto “arte contemporânea”.

O cunho original do trabalho é obtido através de uma notável inteligência espacial, como já vimos, e de um agudo sentida da delicadeza. Efrain trabalha com sugestões, insinuações, possibilidades de significação. Nunca com evidências, citações ou redundâncias. O seu trabalho sugere a possibilidade da emergência ou manifestação de um sentimento – o amor, o prazer, o sofrimento, a dor, a comunhão com a natureza, o medo da morte – mas nunca o impõe como uma evidência ou como um tema a comentar.

As três esculturas que completam a exposição, apresentadas na parede entre os dois pares de pássaros, são um bom exemplo das principais referências e preocupações que alimentam a obra do autor. Duas das esculturas são pequenas figuras humanas, cujos corpos se entrecruzam com troncos de árvores. Numa delas, o tronco de árvore prolonga-se, como desenho ou tatuagem, nas costas da figura. Numa outra escultura, duas cabeças são unidas por um ramo, oval, com a forma de uma coroa de espinhos. Os rostos das figuras, como noutros trabalhos do autor, podem ser vistos como auto-retratos.

A ligação directa à Natureza, pressuposta no material escolhido e na maneira de o trabalhar, completa-se nesta representação de uma fusão física entre corpo humano e árvore, carne e madeira. A marca da vida especificamente humana, animal, é talvez concentrada nas pequenas marcas de cor que, por vezes, assinalam os olhos ou os lábios. A representação do sangue é remetida para a cor vermelha dos fios de canotilho.

Mas estes homens-árvore são também, os portadores de referências religiosas católicas: a madeira da cruz à qual foi pregado o corpo de Cristo; o tronco do martírio de São Sebastião; a nudez do corpo, a nudez da madeira, a marca das feridas. Um universo de imagens religiosas que podem estar também muito próximas de figuras do imaginário sexual. Mas também aqui, nas possibilidades de conotação sexual de alguns destes trabalhos, o que nos surge não é a evidência das marcas da sexualidade, mas antes a sugestão de uma sensualidade física em que a pura vibração sentimental é tão importante como a pulsação física, matérica.

........................

Alexandre Melo, “Efrain”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº41,  Lisboa, Nov / Dez 2000

AS MEIAS







Que tipo de meias é que um homem pode ou deve usar ou não?  Não se trata de um tema fútil, muito menos agora que se aproxima a época da praia. O corpo sempre foi um dos meus temas, aliás é mais que um tema. Portanto: arte, corpo, pernas, pés, meias. Vamos ao que interessa. Devem ser pretas. São como os automóveis nos tempos dos bons velhos Ford – os automóveis – que podiam ser de qualquer cor desde que fossem pretos. Esta é a regra. Há excepções, uma excepção: o branco. Outras cores não se afiguram efectivamente muito possíveis.

Excepto em casos muito particulares. Os arquitectos e os designers, por exemplo, parecem susceptíveis de usar meia das mais variadas cores e até mesmo estampadas; isto é, com uma espécie de bonecos. Os escritores, sobretudo os poetas, são, pelo seu lado, absolutamente imprevisíveis e fica-lhes bem.

Regra geral, porém, o preto é a única cor possível para as meias de um homem.

O que está muitíssimo longe de resolver todos os problemas. Vejamos quais são então alguns dos problemas que subsistem. Não nos chegaria o espaço para examiná-los todos e desta vez eu fiz questão que a fotografia saísse grande.

Apenas alguns aspectos técnicos. As meias têm de ser justas, para não deslizarem, mas não demasiado justas, para não marcarem a carne, deixando uma desagradável impressão ao serem retiradas. As meias têm de estar esticadas, para evitar um ar desleixado, mas não demasiado esticadas, para não sugerirem obediências burocráticas. Devem ser suficientemente espessas, para não serem, sequer, translúcidas, mas suficientemente finas para não adquirirem volume próprio.

Agora a excepção: as meia brancas. Em adultos, só em casos muito raros com sapatos e calças muito especialmente seleccionados. Calças talvez brancas ou em tons pastel.

Já os adolescentes afiguram-se-nos particularmente felizes com meias brancas. Podem mesmo levá-las vestidas para a cama. Mas os adolescentes, como se sabe, até podem andar sem meias. Coisa evidentemente absolutamente proibida para um adulto, mesmo a caminho da praia. Um adulto sem meias, só descalço. Quando se descalçam os sapatos descalçam-se as meias, quando se calçam sapatos, calçam-se meias. É simples.

A questão das sandálias, naturalmente, não se põe, porque os homens não usam sandálias.

Depois há as loucuras, as transgressões. A história de Boris Ieltsin que terá sido visto num aeroporto, cambaleante de álcool, sentado na mala, só com uma meia. A meia rota no pé fora do sapato numa intervenção pública de um primeiro ministro francês. As meias brancas felpudas de Bryan Ferry a crescer como pêlos nos peitos dos pés. Extravagâncias pouco recomendáveis.

........................

Alexandre Melo, “As Meias”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº37,  Lisboa, Julho 2000

MARCANTONIO



Retrato de Marcantonio Vilaça


Num curto período de tempo, Marcantonio, à frente da Galeria Camargo Vilaça, em São Paulo, tornou-se um dos maiores embaixadores da arte contemporânea brasileira. Em Portugal, na Europa, dos Estados Unidos, em todo o mundo da arte, a sua galeria, o seu trabalho, as suas palavras e os seus gestos, deram um contributo decisivo para colocar os nomes dos artistas brasileiros de hoje no lugar de destaque que a vitalidade e originalidade dos seus trabalhos reclamam e merecem, e que, feliz e finalmente, começam agora a ocupar. Em Veneza ou em Nova Iorque, em Lisboa ou em Paris, onde quer que se falasse da América Latina, o nome de Marcantonio tornou-se rapidamente um dos primeiros nomes nas agendas e nas conversas da gente da arte.

A partir do ponto de vista de quem trabalha num país pobre da periferia europeia, como é Portugal, é possível avaliar devidamente a dimensão ciclópica do trabalho de divulgação e promoção que é necessário desenvolver para, num curto espaço de tempo, ultrapassar uma enorme acumulada distância geográfica, histórica e cultural, e os correspondentes complexos de inferioridade, e afirmar o trabalho dos criadores dos nossos países, de uma forma ambiciosa e desassombrada, como parte plenamente integrante da dinâmica da criação artística contemporânea, à escala mundial. Para que um tal trabalho produza resultados rápidos e visíveis, são necessários um empenhamento e uma entrega sem limites.

De Marcantonio conhecemos o profissionalismo exemplar, a assombrosa energia, a absoluta dedicação ao trabalho, a obstinação sem quebra na defesa dos seus artistas, dos seus princípios, dos seus valores. Os valores de uma cultura contemporânea viva, aberta, dinâmica, cosmopolita. Uma cultura brasileira e cosmopolita, porque quando se trabalha no plano da verdade, não há contradição entre culturas locais, culturas nacionais e culturas globais. E este é o verdadeiro espírito do cosmopolitismo, o espírito de Marcantonio, príncipe brasileiro de uma arte sem fronteiras.

Falei de profissionalismo, de sucesso, de capacidade de trabalho de afirmação. De tudo isso vive o mundo da arte contemporânea e vivemos todos nós. Os que não conhecem o mundo da arte, os que nunca o viveram por dentro, e dentro de si próprios, pensam mesmo que é só disso que vive o mundo da arte: fama e sucesso. Mas não é verdade.

O que é que faz correr, então, essa coisa louca que é o mundo da arte? É a vontade de viver das pessoas que querem viver uma vida mais rica, mais intensa, mais veloz. Uma vida excepcional, que faz apelo a tudo aquilo que não tem lugar nas rotinhas burocráticas e tecnocráticas das vidas quotidianas mais banais.

Estou a falar de desejos de pessoas que querem encontrar pessoas extraordinárias, que querem gastar noites inteiras em discussões extravagantes, que querem sentir emoções fora do comum, que querem ser confrontadas com objectos incompreensíveis, que querem lidar com desafios intelectuais nos limites do absurdo. Não poupam horas, nem a energia, nem as palavras, nem os sentimentos.

É isto que faz bater o coração do mundo da arte. A vontade de sentir mais. A obstinação na exigência de mais. Mais de tudo, de outra maneira. sempre mais e sempre de outra maneira.

Todos os momentos que passei com Marcantonio foram momentos de entusiasmo, exaltação, bem estar, alegria. A alegria da comunhão, da fraternidade, da cumplicidade.

Esta é a maior riqueza do mundo da arte. E não há maior riqueza que o coração de um nos possa revelar. A alegria dos entusiasmos e dos sentimentos partilhados é imortal. Porque um dia a sentimos e, porque a sentimos, jamais a poderemos esquecer.

................................

Alexandre Melo, “Marcantonio”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº36,  Lisboa, Junho 2000


OBJECTOS E PALAVRAS



Jorge Molder. The Secret Agent series. 1991


Os objectos artísticos, salvo casos deliberadamente “programáticos”, raramente se submetem sem abuso a uma arrumação exclusiva, e isto por força da eficácia especifica da sua presença. Se nos pomos o problema da análise concreta de um objecto concreto, acabamos por ter de ensaiar a aplicação de todas as lógicas a todos os objectos, mesmo quando em aparente contradição com o que parecia ser a sua lógica ordinária. Ver como é que funciona. Apercebemo-nos rapidamente da larga medida em que a lógica de funcionamento do objecto vai depender das formas concretas da sua localização e contextualização social, cultural, teórica. Sendo que o nosso próprio discurso é parte integrante desse mecanismo de contextualização.

O “relativismo” inerente a esta conclusão só poderia embaraçar-nos se entendêssemos, primeiro, que existia uma verdade do objecto a descobrir e, segundo, que existia uma teoria cuja aplicação conduzia a essa descoberta. Pertencendo tais crenças a uma horizonte de anacrónicos preconceitos gnoseológicos, defendemos a pertinência de um discurso a propósito das obras de arte não como instrumento da verdade mas como liberdade e possibilidade de funcionamento e de pensamento. Se as obras de arte se caracterizam por dizer – admitindo que se pode aqui utilizar a palavra dizer – algo que não pode ser dito de outra maneira, qual é a natureza daquilo que se pode dizer sobre essas mesmas obras? O discurso sobre obras de arte não pode dizer de outra maneira aquilo que elas dizem (?). Mas pode dizer algo sobre a maneira como elas dizem (?). E de que maneira pode dizê-lo?

A comparação entre o estatuto do poema e o do objecto artístico – no âmbito das artes plásticas – permite alguns paralelismos. O primeiro diz respeito ao efeito de estranheza ou, se quisermos, ambiguidade. As palavras mais simples e mais correntes podem, no contexto de um determinado poema, produzir efeitos imprevisíveis e ilimitados. Do mesmo modo, formas e objectos simples e correntes podem, quando desviados e agenciados no contexto de um objecto artístico, desencadear cadeias inesgotáveis de conotações e significações.

O segundo paralelismo diz respeito à questão do ritmo. Tal como a leitura de um poema exige uma sintonização de cadências e de afectos, também a leitura de um objecto artístico exige um sintonização que recobre diferentes aspectos. Um primeiro aspecto é a capacidade de apreender a modelação sensível da superfície visível do objecto. Neste âmbito, a sensibilidade rítmica é particularmente útil para abordar a natureza descontínua de objectos em que frequentemente se cruzam diferentes lógicas, processos e registos. Um segundo aspecto da sintonização é a capacidade de, para além da superfície visível, ser capaz de ficcionar a emergência de uma personalidade ou a força de um enigma.

A cada passo encontramos elementos que funcionam como chaves, portas, fechaduras. Remetem umas para as outras de forma imperativa e necessária mas nunca definitiva. Nada se abre e nada se fecha de uma vez por todas. A rede é cada vez mais rica e mais tensa mas a solução é sempre diferida. Esta dinâmica circunscreve uma espécie enigma central. Mas o enigma não é encarado nem de um forma mística – uma super-essência oculta – nem de uma forma lúdica – um jogo de escondidas. O enigma tem um valor prático, operacional. É um centro virtual que serva para activar deslocações. As peças do processo vão sendo exibidas, completadas, aumentadas, complexificadas. Mas nunca são explicitadas as condições da sua decifração integral. A sombra do enigma serve para instaurar uma disciplina cruel. A crueldade é a obstinação em objectos imperativos e necessários. Sem que a necessidade seja explicitada ou evidente. A disciplina é a obstinação, no rigor das demarcações. Objectos criminais. Obras de arte.

.........................

Alexandre Melo, “Objectos e Palavras”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº34,  Lisboa, Maio 2000

ARTE E DESIGN



Bertrand Lavier. Calder sur Calder. Mobile sobre aquecedor. 1988


Qualquer objecto pode ser uma obra de arte. Qualquer coisa, mesmo que não seja um objecto, pode ser uma obra de arte. Ao longo do século XX, com o trabalho das vanguardas dos anos 10, dos anos 60, dos anos 90, deixaram de existir limites formais ou fronteiras objectivas para definir aquilo que pode ou não ser arte.

Tal como deixaram de existir fronteiras rígidas entre as artes plásticas e as outras disciplinas criativas, entre as quais o design.

As regras da excepcionalidade – aquilo que só a mão de um génio pode fazer –, da unicidade – aquilo que não pode ser repetido -, ou da universalidade – aquilo que todos consideram belo -, deixaram de ser critérios absolutos. A tecnologia permite que tudo seja discutido ou contestado. A arte torna-se um território infinito de imaginação e liberdade.

Todos os objectos têm design. Mesmo as coisas que não são objectos têm design. Pensemos na iluminação, design da luz, na coreografia, design dos gestos, na retórica, design da fala.

Todos os objectos alguma vez produzidos resultaram de um conceito pensado, ou resultaram de um determinado sistema de pensamento, mesmo que este não se traduzisse conscientemente em conceitos aplicados à produção de objectos. Tudo é design. Mesmo o ar que respiramos, é moldado, filtrado, desenhado pelo desenho do espaço – arquitectura, decoração, equipamentos urbanos – em que respiramos.
Então, onde é que está a diferença? Então, porque é que falamos de arte ou de design?

Porque quando fazemos arte ou design, quando chamamos arte a uma coisa ou dizemos que uma coisa tem design, estamos a ganhar uma outra consciência e a dedicar uma outra atenção às coisas que estamos a observar ou a conceber.

Essa outra consciência e essa outra atenção caracterizam-se por um estado de alerta de toda a nossa inteligência e sensibilidade, caracterizam-se por um investimento intelectual mais forte e uma disponibilidade emocional mais intensa, caracterizam-se por uma máxima abertura de espírito e um mais sério empenhamento na pesquisa.

Uma consciência aberta e disponível, uma atenção entusiasmada e afectuosa. É isso que os distingue da mera repetição das rotinas do quotidiano. É por isso que um quotidiano e uma sociedade sem arte nos condenaria à infinita repetição das mesmas coisas, sem prazer, sem novidade e sem entusiasmo.

Ao falarmos de arte e design falamos de objectos que se situam no território da complexidade. Mesmo que sejam simples. O território da complexidade não remete para qualquer tipo de complicação formal mas sim para uma disponibilidade do objecto para instaurar diferentes níveis de leitura e de funcionamento. Sem que esses diferentes níveis possam ser reduzidos uns aos outros e sem que possam ser esgotados no interior de um sistema fechado. Daí resulta a ambiguidade. A capacidade do objecto preservar uma margem de indecidibilidade e inapropriabilidade. Para além daquilo que o objecto é, na força da sua presença, e para além daquilo que ele é, na rede dos discursos que o articulam, o objecto mantém uma capacidade para ser mais. E esse mais remete para a sempre renovada actualidade uma experiência.

............................
Alexandre Melo, “Arte e Design”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº34,  Lisboa, Abril 2000

CASSOULET



“A clever cook puts unlikely things together. It’s called artistry”
(Mr. Spica, o ladrão, in The Cook, the Thief, His Wife and Her Lover, Peter Greenaway)


Peter Greenaway. The Cook, the Thief, His Wife and Her Lover. Film Still.


Arte e comida, os artistas perante a comida, a representação da comida, as receitas, os restaurantes e os convívios gastronómicos dos artistas. Um tema que dá para vários luxuosos volumes daqueles de capa grossa e com centenas de ilustrações em que se atravessa a história da arte a partir de um ponto de vista particular e supostamente original e estimulante. Desde os pormenores técnicos da representação realista dos alimentos, até ao significado social das tertúlias artísticas estabelecidas em torno de uma mesa, passando pelas implicações psicanalíticas da relação entre a alimentação, o sexo e a morte, as possibilidades de investigação histórica e especulação intelectual são múltiplas.

“Há uma coisa de que gosto muito num filme de Truffaut com Jean-Pierre Léaud, já não sei em qual. Ele trabalha num escritório de detectives com um velho detective que faz de seu professor e que lhe diz: ‘À quinta-feira há um cassoulet muito bom num pequeno restaurante na esquina do Boulevard Montparnasse com o Boulevard Edgar Quinet’. Depois o velho detective morre e o que parece horrível é que aquela sabedoria vai desaparecer. O ensino é realmente isto, é dizer a alguém que à quinta-feira há um cassoulet muito bom numa determinada esquina. (...) Isto funciona ao nível do Clube dos Cinco. Há os que sabem que aquele cassoulet é bom, e mesmo que o cassoulet não seja bom isso é impensável porque aqueles cinco e apenas aqueles cinco sabem que o cassoulet é bom naquele local”. - (p.139/140). É uma observação do Christian Boltanski inserida num debate sobre a questão do ensino artístico orientado e publicado por Thierry de Duve (Faire École, Les Presses du Réel, Paris, 1992).

Na sequência do debate Thierry de Duve insistirá na valorização do modo iniciático na aprendizagem do métier de artista, acrescentando que aquilo a que Boltanski chama o Clube dos Cinco é o que ele próprio chama tradição e os outros poderão chamar vanguarda.

O aspecto fundamental que aqui nos importa reter – e que a equivalência de termos sugerida por Duve vem reforçar – é que a circunstância de saber onde, quando, com quem e o que se come, surge como elemento identificador de um saber e de um estatuto social específicos. A transmissão de uma informação preciosa sobre o modo de comer surge como um protocolo ou uma condição de admissão num circulo restrito de eleitos, ou seja, como um indicador da concessão e do reconhecimento do estatuto de pertença a um grupo especial: o grupo de artistas.

A comunhão alimentar propicia a demarcação de um grupo que através deste ritual se instituiu como grupo separado do conjunto de sociedade, definindo, como qualquer elite, uma fronteira de exclusão ou uma barreira à entrada que consiste na detenção de uma informação que dá acesso a uma experiência convivial restrita.

Em relação ao modelo heróico do artista como ser de excepção, isolado na sua Torre de Marfim, há uma deslocação: da individualidade para a convivialidade. O auto-centramento dá lugar ao espírito de grupo. Estamos agora a lidar com o modelo do artista gregário, tendencialmente elitista – a elite pode ser a tradição, a academia, a vanguarda, o grupo, o lobby ou mesmo a boémia marginal – socialmente orientado para um tipo especial de convivialidade que é, também, um modo de preservação e reprodução dos atributos distintivos e a afirmação do correspondente poder dos artistas, enquanto grupo.

.........................................
Alexandre Melo, “Cassoulet”, in Arte Ibérica, Ano 4, Nº33,  Lisboa, Março 2000