Júlio Pomar na Coleção Millennium bcp
«Se as empresas têm
responsabilidade de contribuir para a produção artística, princípio que hoje
começa a ser indiscutível, têm também, em nossa opinião, a responsabilidade de
propiciar que a mesma seja usufruída por todos.»
«Naturalmente que, para haver
pintura, é necessário haver uma necessidade e um consumo de pintura, e, por
outro lado, é necessário que haja pintores. Tal como para haver sapatos é
necessário que haja sapateiros, e haver também quem tenha necessidade de
sapatos e disponha do necessário poder de compra.»
«Arte é liberdade. É imaginação, é
fantasia, é descoberta, é sonho. É criação e recriação da beleza pelo ser
humano.»
Estas três citações foram escritas
por um artista, um político e um banqueiro, não necessariamente por esta ordem.
Podem tentar adivinhar quem disse o quê e quem são os autores. É um jogo que
não tem muita graça, nem relação necessária com o texto que se segue, mas para
quem goste de relações interativas
talvez a charada torne a leitura menos aborrecida.
A obra e a personalidade de Júlio Pomar
têm hoje uma dimensão histórica que resulta de mais de setenta anos de trabalho
que criaram um perfil de autor no sentido mais completo da palavra. Não apenas
pintor ou artista, mas também intelectual (espero que, apesar de tudo, estas
designações ainda possam não ser consideradas ofensivas ou ridículas) e figura
ativa no plano político e cultural, mantendo uma presença e intervenção quase permanentes
na cena artística e cultural nacional, mesmo quando viveu no estrangeiro. As
histórias do trabalho e das condições de trabalho de Pomar (e das suas
reflexões sobre o seu trabalho ou o trabalho de outros artistas, editadas nos
Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar, Parte
Escrita I, II e III) são indissociáveis da história
política e cultural de Portugal desde a Segunda Guerra Mundial até à
atualidade: a oposição ao regime fascista, o Partido Comunista Português e o neorrealismo;
a polémica figuração versus abstração; o 25 de abril, Mário Soares e a
construção da democracia; os anos de 1980, o então chamado «regresso à pintura»
e tantas outras liberdades ou libertinagens artísticas que o seu trabalho e os
seus humores lhe foram permitindo e continuam a permitir. É por isso que a
leitura dos seus textos e intervenções são relevantes, não só no que diz
respeito à evolução da sua obra, mas também em relação à evolução das
conjunturas artísticas em Portugal.
A dimensão e o fôlego deste texto
não permitem percorrer este arco temporal
segundo uma sistematização historiográfica rigorosa, que a quantidade, a
qualidade e a diversidade das obras de Pomar na Coleção Millennium bcp por certo
permitiria, num outro contexto. Em alternativa a esta hipótese, tomei a
liberdade de optar por uma sequência de recordações pessoais mais ou menos
ficcionadas.
A primeira obra de Júlio Pomar a
que prestei atenção foi uma pequena pintura, creio que do «Ciclo do Arroz», que
estava numa parede da casa do diretor da escola que frequentava. Foi naquela
altura, julgo que ainda antes do 25 de abril, em que, como tantos outros pobres
teenagers bem intencionados, tinha
resolvido ler a obra completa de Alves Redol (fartei-me quando cheguei ao Barranco de Cegos) e até tentei
colecionar-lhe primeiras edições com capas de Manuel Ribeiro de Pavia. Mas da
pintura em causa aquilo que hoje recordo não é nenhum empolgamento
pré-revolucionário, mas antes uma turvação de tons e traços cinzentos, azuis (prateados?).
Aproveito o pretexto para tratar a
questão do realismo. Digamos que a obra de Pomar não é, em sentido estrito,
figurativa, na aceção em que isso implique a reprodução de imagens ou estereótipos
de representação pré-existentes (como impunha, caso extremo, a ortodoxia do
realismo socialista, corrente de estrita obediência e propaganda política e
ideológica). Mas a obra de Pomar também não é abstrata no sentido de um
exercitamento de um puro jogo de puras formas, afastadas de qualquer referente
real concreto – de que é exemplo, na coleção Millennium bcp, o desenho Pessoas Sentadas no Chão (Estudo para Fresco
–, Cinema Batalha) (sem data). O gosto pelo paradoxo levar-me-ia a dizer
que Pomar é realista (ou até talvez neorrealista, porque não é realista à
maneira do século XIX) sobretudo quando deixa de o ser.
Cor, movimento, luz, ritmo, a vida
é a existência de corpos em movimento. (Veja-se, dos anos de 1960, na Coleção Millennium
bcp, Longchamp I). Não há mais nada
nem há outra realidade. Se pudéssemos reter qualquer coisa da experiência disso,
seria muito bom e estava resolvido o problema do realismo. Mas parece que é impossível.
Só mesmo vivendo. No entanto, é possível tentar. O trabalho da pintura (por
exemplo, a pintura de Pomar) é uma dessas tentativas, e vale a dobrar porque
sendo um trabalho concreto, para além do que seja enquanto representação, é
também ele, enquanto trabalho, movimento vivo de um corpo, o corpo do pintor. Será
por isso que Júlio Pomar diz que às vezes lhe é difícil dar uma pintura por
acabada (ceifada...)? Será que o Gadanheiro
é afinal o do Sétimo Selo, à espera da colheita das obras completas?
Está na altura de outra recordação.
Durante uma reportagem televisiva em direto sobre a execução do painel
comemorativo do 10 de junho de 1974, em que participaram dezenas de artistas
plásticos, alguém disse a Pomar, sem malícia, que achava a pintura dele «complicada».
Se bem me lembro, Pomar comentou : «A vida também é complicada». Um bom exemplo
de um comentário despretensioso e difícil de desmentir (... é o tal realismo).
Parece-me que dei um pequeno salto
cronológico. Entretanto, passei bastante tempo na Galeria 111 a ver a exposição
de Pomar em 1973. Cores fortes em superfícies homogéneas separadas por
contornos bem definidos, tal como o paradigmático Le Bain Turc (d’après Ingres), pareceram-me
coisa sedutora e merecedora de demorada atenção. Muito mais tarde teria ocasião
de ver mais alguns exemplos em casa de uma das pessoas «retratadas».. Pinturas
que uma senhora bem educada só poderá descrever como composições abstratas. O
que não nos deve impedir de, entre nós, sublinharmos a circunstância de se poder
insinuar que aquilo afinal (tal e qual como na vida) mete sexo por quase (?)
todos os lados. Só que não era óbvio, ou se calhar até era.
Deste período, a Coleção Millennium
bcp inclui um vasto conjunto de obras, nomeadamente os chamados «quartos»: Surface Rouge-vert. Nu Unique, Sem título (O Quarto Laranja), Sem título e La Chambre Noire, bem como uma tapeçaria de Portalegre, sem título,
que poderia ser apelidada de «quarto azul».
... Por essa época tinha-me
ocorrido ler com obstinação e colecionar primeiras edições de Maria Velho da
Costa. Calhou muito bem a publicação de Corpo
Verde com desenhos de Júlio Pomar. Lá estavam outra vez o movimento, os
corpos e o sexo, mas de outra maneira, e passei muito tempo a inventar
correspondências entre os traços de Júlio Pomar e as frases da escritora.
No entanto, o desenho de Pomar com
o qual mais longamente convivi vem de outro «estilo» e de outras conversas.
Olhei para ele quase todos os dias, durante muitos dias, enquanto tomava o
pequeno almoço no British Bar. Um retrato «realista» de José Cardoso Pires que
sempre me pareceu uma benfazeja evocação do espírito de convívio e suave boémia
que é parte integrante da memória afetuosa do que quer que alguma vez tenha
sido a «vida de artista». Vejam-se na Coleção Millennium bcp os retratos de
Tereza, sua esposa, bem como o de João Duarte que, sem sabermos como ou
exatamente onde, apanham o traço distintivo de cada personalidade.
Por falar em retratos, não posso
deixar de falar de um dos mais interessantes retratos recentes da história da arte
e da política em Portugal: o retrato de Mário Soares. Talvez não seja uma
questão política mas há uma alegria, uma energia, uma vitalidade, uma exibição
sincera do prazer no exercício do poder que hoje, em política, é já apenas uma
memória. Um bom político precisa de uma combinação equilibrada de boas
qualidades e bons defeitos. Alguma agressividade é necessária, e também algum
egocentrismo, que permita o prazer narcísico necessário para chegar a ser
generoso, quando se tem uma ocupação tão aborrecida. Hoje em dia a maioria dos
políticos só têm defeitos e ainda por cima são os defeitos errados: contabilistas
zombies em estágio para uma emigração
mais ou menos dourada.
Por falar em agressividade,
poderíamos falar dos tigres (veja-se o Tigre
da Coleção Millennium bcp, escolhido para rosto desta exposição) que são uma
forma de retrato mais sexuada e mais texturada. Importa ainda destacar o modo como
a sexualidade se manifesta sob uma forma renovada nas pinturas-colagens mostradas na Fundação Calouste
Gulbenkian em 1978 (existentes também na Coleção Millennium bcp) e que são uma
boa razão (juntamente com os objetos que também foi fazendo) para relativizar
uma usual tendência para considerar Pomar um «puro» «pintor-pintor».
Com os anos de 1990, chegamos aos
retratos de grupos por vezes inusitados, como por exemplo O Lobo, a Cabra, a Couve e o Cozinheiro, que inspira o título deste
texto. Neles encontro uma apaziguadora liberdade sentimental e um reconfortante
sentido de humor.
No entanto, para a conclusão,
resolvi reservar a Amazónia: “Tawapayera, Minha Aldeia” (como cantou David Assayag
para o Boi Caprichoso no Festival Folclórico de Parintins, em 2014). Numa conversa
em finais de 1990, Pomar, a propósito da sua estadia entre os índios, falou-me
do modo como, em 1997, resolveu «ousar o que sempre adiara»: «A evocação, numa
grande tela, do espetáculo que todos os dias tinha tido diante de mim, da
barraca onde fazia atelier. Em baixo corria o Tuatuari, ribeira de águas
transparentes onde a criançada índia, crianças e adolescentes dos dois sexos,
vinham ao meio-dia para um ritual muito deles, banhar-se, nadar, brincar, dar
largas à sua natural alegria de viver. O espetáculo mais extraordinário que eu
já vira.» Veja-se La Baignade des Enfants
dans le Tuatuari.
Nos últimos dois anos visitei por
duas vezes a Amazónia e, apesar de não ser nem criança nem adolescente, tomei
banho no rio com pessoas e botos, com uma pele dotada de admiráveis texturas e tonalidades
rosadas (chamam-lhes botos rosa e parece que puxam os rapazes para o fundo do
rio para brincar com eles), assisti às festas do Boi Bumbá em Parintins, uma
das mais apaixonantes experiências culturais vivas a que já assisti (uma
espécie de 3 em 1 de ópera, futebol e carnaval). Destas festas, às quais eu não
sei se Pomar assistiu, encontro ecos inesperados em várias séries de trabalhos,
nomeadamente, na coleção do banco: Mascarados
de Pirenópolis n.º 15 ou Les Txicão
– absolutamente representativos das experiências que o pintor viveu naquele
território. Afinal, talvez os ecos não sejam tão inesperados como isso, porque
o assunto é sempre o mesmo: cor, movimento, luz, ritmo. A vida é a existência
de corpos em movimento. Não há outro assunto.
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NOTA – As citações iniciais são,
por ordem, de Carlos Santos Ferreira, Júlio Pomar e Álvaro Cunhal.
Texto publicado em catálogo por ocasião da exposição 'Obras da Colecção BCP - Júlio Pomar', de 04/10/2014 a 06/01/2015, comissariada por Sara Antónia Matos.
Texto publicado em catálogo por ocasião da exposição 'Obras da Colecção BCP - Júlio Pomar', de 04/10/2014 a 06/01/2015, comissariada por Sara Antónia Matos.
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