João Onofre. Pas d'Action. 2002.
Quem procura
as rotas e as ruas do mundo da arte tem que estar preparado para responder a
uma pergunta: «Passa-se alguma coisa no teu país?». Ou seja, neste caso, em
Portugal.
Há 20 anos
atrás, contra a multissecular choradeira das lamentações lusitanas – que agora
parece estar a ser reabilitada – habituei-me a responder: «Há uma nova geração
de artistas que importa conhecer o mais depressa possível porque vão dar que
falar por esse mundo fora». Hoje, a resposta é a mesma.
A nova
geração, os artistas portugueses do século XXI, faz parte da primeira geração
nascida depois do 25 de Abril. Os tempos mudaram. Não se trata do fulgor
contestatário com que a geração de 60 enfrentou o cinzentismo fascista. Não se
trata do entusiasmo eufórico com que os anos 80 se afirmaram contemporâneos do
mundo. Trata-se apenas de assumir a condição de artista, hoje, sem passar pelos
traumas nem sequer pela luta contra os traumas do ancestral complexo de
inferioridade nacional.
Os artistas
de que falo, todos com menos de 30 anos, nomes como, entre outros, João Onofre,
Filipa César, Vasco Araújo, João Vilhena ou João Pedro Vale, estudaram, viajam,
vivem, trabalham ou expõem, naturalmente, em Portugal ou no estrangeiro. Desde
os anos de formação até às exposições individuais que começam a realizar foram
capazes de esboçar territórios próprios e afirmar linhas de trabalho
específicas que dão já, tanto quanto um jovem artista o pode fazer, as
garantias de competência profissional e autonomia de imaginário que são o mais
seguro indício de que podemos falar de autores.
Em 2001, aos
25 anos, João Onofre realizou a sua primeira exposição individual. O facto
pouco teria de extraordinário não se desse o caso de esta exposição ter lugar
em Nova Iorque, na Galeria I-20 em Chelsea, e ter sido objecto de um
acolhimento crítico positivo com direito a recensão da prestigiada revista
«Artforum» (Dezembro 2001). João Onofre nasceu e trabalha em Lisboa, estudou
pintura em Belas Artes no Porto e em Lisboa e fez mestrado no Goldsmith em
Londres. Como é que aquilo que, para sucessivas gerações de artistas
portugueses, era um objectivo final quase inatingível foi aqui um ponto de
partida. Como é que se chega, tão depressa, a Nova Iorque?
A história
começa com a apresentação no «stand» da Galeria Presença na ARCO (Feira de Arte
Contemporânea) em Madrid, 2000, de um vídeo que aí foi visto por Harald
Szeemann, que o escolheu para estar presente na Bienal de Veneza, em 2001, por
ele dirigida. Seguiram-se múltiplas presenças individuais e colectivas, em
galerias e museus, um pouco por todo o mundo.
O primeiro
trabalho de João Onofre a fixar a minha atenção foi uma instalação vídeo
construída a partir de uma breve sequência de Martha, um dos terríveis filmes de Fassbinder. Os protagonistas
cruzam-se na rua e, como tantas vezes já sucedeu a tantos de nós, pouco depois
de se cruzarem, voltam-se para trás, ao mesmo tempo, e os seus olhares
encontram-se durante um período de tempo brevíssimo, mas que torna esse
encontro de olhares irrevogável.
É como se
tivessem sentido, sem chegar a ter disso uma consciência clara, que já se
tinham cruzado. O primeiro momento é já uma reminiscência. João Onofre corta, repete,
faz «loop». Faz um nó com estes olhares e com estes corpos. Instaura o tempo
como nó, e no modo como instala a peça, num «écran» em torno do qual o
observador deve circular, integra-nos também a nós nos nós deste tempo, destes
corpos, destes olhares.
O seu
trabalho mais conhecido, o vídeo Casting
(2000), apresentado em Veneza, mostra um conjunto de jovens manequins que,
um após outro, vão dizendo, de frente para a câmara, uma frase de Ingrid
Bergman no final do filme Stromboli de
Rossellini: «Che io abbia la forza, la convinzione e il coraggio». O contraste
entre a carga política e dramática da referência e a circunstância mundana de
um «casting» criam uma ambiguidade quanto ao sentido da mensagem e uma
expectativa paradoxal quanto ao desfecho da situação.
Do que se
trata aqui, como noutros trabalhos do autor, é de pôr e expor os corpos, e os
seus precários sujeitos, dentro do estrito e estreito enquadramento de um nó de
tempo que se repete sem escape nem redenção.
Um dos mais
fortes exemplos deste efeito de quase cruel sobre-exposição encontra-se na Pas d’Action (2002), apresentada pela
primeira vez o ano passado na Feira de Arte de Basileia.
Neste vídeo
vemos um grupo de jovens bailarinos que, perante a impiedosa imobilidade da
câmara, se tentam manter na posição de «pontas» durante o máximo de tempo
possível até se deixarem «cair».
Numa
generalização especulativa diríamos que estamos perante uma reflexão sobre a
noção de identidade. A própria juventude dos participantes remete para o
processo de construção social da identidade. Existimos hoje em sociedade porque
e se temos a «força» de nos expormos sujeitando-nos aos exercícios de
representação que nos são requeridos e ao frio escrutínio e selecção realizado
pelos espectadores que são, afinal, todos os que nos rodeiam. A situação de um
artista, um novo artista, é um caso exemplar. O jovem artista apresenta a sua
candidatura ao reconhecimento social do estatuto do artista, armado da «coragem»
de exibir os produtos da sua imaginação. Compete à nossa atenção qualificar a
justeza e o valor das suas «convicções».
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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 15 de Agosto 2003, p. 24.
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