Filipa César. Berlin Zoo, Part02, 2001-2003
Quando olho
para alguém tento compreender o seu olhar. Quando olho para o trabalho de um
artista vejo uma determinada realidade tal como ela foi olhada, ou seja,
produzida, por esse artista e, ao mesmo tempo, através desse produto que é a
obra de arte, aprendo a conhecer o olhar do artista. A especificidade desse
olhar, se eu a apreender, transforma o artista num autor, único, mestre de um
olhar particular cujas invenções passo a poder partilhar. É esse o maior prazer
implícito na descoberta de um novo artista.
Filipa César
é um dos nomes fortes da nova geração de artistas portugueses para o século
XXI, os artistas da primeira década do novo século. Nasceu em 1975 no Porto
onde iniciou os estudos que prosseguiu em Lisboa e Munique para onde foi viver
há quatro anos. De Munique seguiu para Berlim onde hoje vive e trabalha. O seu
trabalho foi apresentado em exposições colectivas em Milão, Berlim e São
Francisco. A primeira individual na Galeria Cristina Guerra, em Lisboa, foi uma
das revelações da última temporada. Já este ano recebeu o Prémio União Latina.
Filipa César faz parte da primeira geração de artistas portugueses que são
naturalmente cosmopolitas: circulam e fazem circular o seu trabalho pelo mundo
sem sentimentos de exílio, desforra ressentida ou ultrapassagem eufórica em
relação ao torrão pátrio.
Se quisermos
um tema para começar a falar do trabalho de Filia César podemos dizer que o
tema é o olhar.
É um dos
momentos mais voluptuosos da experiência cinéfila. Uma das formas do suspense
que alimenta o olhar do «voyeur». O momento em que uma porta se entreabre ao
cimo de umas escadas, ou range ao fundo de um corredor. Ou a câmara salta para
dentro de um quarto com a promessa de lhe revelar os segredos. O que é que se
passa lá dentro?
Vamos
imaginar que este momento se prolonga através de uma interminável sucessão de
situações de entrada em espaços dos quais nada chegamos a descobrir porque
entretanto já estamos a entrar num outro espaço. Foi isto que em Untitled (Twirler) (1999) Filipa César
imaginou recorrendo a uma montagem em «loop» de uma série de sequências de
vários filmes.
A eternização
de um suspense deste tipo instaura um ritmo alterado de percepção que gera um
efeito de metamorfose: os espaços começam a transformar-se uns nos outros. Em Untitled (2002), um infindável
«travelling» revela-nos a metamorfose entre a coberta desalinhada de uma cama e
uma tranquila paisagem natural.
Mas há outros
trabalhos em que é o olhar das pessoas que se torna o objecto directo da
atenção da câmara num exercício próximo de uma antropologia do olhar.
No vídeo Letters (2000) observamos personagens
anónimos que se sucedem e substituem numa estação de correios, deixando nos «guichets»
as suas cartas e deixando-nos a nós a possibilidade de lhes inventar um
destino, um romance, um filme. Um momento comum do quotidiano transforma-se
numa situação de suspense.
A análise dos
olhares e comportamentos de quem espera é particularmente rico no vídeo Lull (2002) que encena com obsessivo
pormenor – extensivo à banda sonora – os movimentos de um conjunto de pessoas
que se confrontam e sucedem numa sala de espera. Que fazemos quando esperamos?
O que vemos quando não olhamos para nada? Em que pensamos quando não pensamos
em nada?
Há quem diga
que não se pode não pensar, tal como não se pode não ver, mesmo de olhos
fechados.
O que vemos
enquanto pensamos? O que é que pensamos quando vemos uma obra de arte? O que é
que vemos quando pensamos numa obra de arte?
Somos responsáveis
pelo uso do nosso olhar. A realidade que vemos e vivemos é o produto do
trabalho realizado pela nossa imaginação a partir do que lhe oferecemos. Por
exemplo: uma obra de arte, o produto do olhar de um artista, o olhar vivo de
alguém.
...................................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 20 de Setembro 2003,
p. 44.
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