UM PIRATA NA SALA DOS SONHOS
Jon Routson. Bootleg (8 Mile). 2003 |
O NEGRO CORAÇÃO DO OURO
EDUARDO BATARDA
Artes&Leilões
Junho-Setembro 1990
Eduardo Batarda, O Sr Professor C. J. P. Na Hora do Maior Movimento, 1965 |
29 de Outubro
de 1943. Escorpião. Segundo o nada científico livro dedicado a este signo por
Michéle Cursio «o escorpião, um dos mais antigos habitantes do planeta, tem
mantido, ao longo de milhares de anos, a mesma forma, como se a natureza o
tivesse considerado perfeito desde a sua apreciação. Apresenta ainda uma
particularidade surpreendente: não está imunizado contra o seu próprio veneno
e, perante uma situação que considera sem saída, chega a picar-se a si próprio.
Ora, entre os animais o suicídio (ou antes, a autodestruição) é raríssimo; no
escorpião é normal. Este animal, triste mas perfeito, parece, portanto, possuir
um destino absolutamente excepcional». (Publicação Europa-América, Colecção
Zodíaco, p.12/14.)
Horóscopo e biografia
Segundo
Eduardo Batarda «não sei bem quais são as características psicológicas que as
pessoas me costumam atribuir. As reacções directas são raríssimas. Às vezes as
pessoas não fazem outra coisa senão confirmar na base de ‘ah, és mesmo um
escorpião’. De resto as características marcadas que os escorpiões são supostos
ter também não sei bem quais é que são...Sei que passam pela autodestruição,
pela análise e mania da desmontagem, e em casos mais complicados por coisas
como a autorecriminação, a culpa, a dúvida, relações tipo sadomasoquistas com o
resto do mundo, o universo, Deus, etc. Aquilo que eu penso e que estou
convencido que é aquilo que maior parte das pessoas que pensa alguma coisa de
mim diz, acha ou escreve não tem tanto a ver com o escorpião, porque é mais na
base de “ah, esse, pois...”. É qualquer coisa de não muito negativo, mas também
nada de positivo. E não tem nada a ver com certos sentimentos de agressão,
agressividades, maldade, ataque.»
Ainda ao
nível da caracterização psicológica da personagem, mas já também a propósito do
trabalho, vale a pena insistir no carácter obsessivo.
« Se eu concordar parece que me estou a gabar de qualquer coisa. Mas tenho que
dizer que o meu trabalho é obsessivo porque é meu, porque é o que eu faço e
tenho tendência a fazê-lo muito, tanto como as coisas que posso facilmente
referir como obsessões, que são os ‘hobbies’. Por comparação com as minhas
colecções e as manias, percebo que o meu trabalho é qualquer coisa que tem
características de manias ou desse tipo de obsessão. Por ser o meu trabalho,
por ser supostamente arte, tem outro peso descrevê-lo como obsessão...teria a
ver com vários níveis de gabarolice. Teria que estar a dizer que trabalhava
muito, e quem diz que trabalha muito em princípio funciona com o preconceito
que diz que trabalhar muito é bom, coisa com a qual eu não concordo. Por aí
talvez o meu trabalho seja qualquer coisa de obsessivo, porque é que eu faço
tanto uma coisa com a qual não concordo...por obsessão, por mania? Em tempos
talvez fosse possível dizer que tinha a teima de descascar as coisas,
simplesmente parece que depois de várias décadas de desconstrução foram
encontrados métodos que aliás não desmerecem, métodos por exemplo
reconhecidamente admitidos como boas maneiras de comunicar visualmente, como
ter uma ideia de cada vez, não complicar as coisas, ser explicado, breve. Se
havia qualquer intenção obsessiva de fazer essa leitura da leitura, essa
análise das possibilidades dos sentidos, e eventualmente essa demonstração ou
exibição de que estava a fazer essa leitura, se eu sabia isso então eu deveria
ser explicado e breve, e há-de ser por qualquer coisa que já é uma obsessão a
outro nível que eu não sou nem explicado nem breve ».
Apesar da
entrada directa nos temas mais profundos, um perfil não dispensa algumas
convenções biográficas. Do género: nasceu em Coimbra, no meio de Portugal e da
2ª Guerra Mundial. Foi estudar Medicina para não fazer a desfeita à família.
Andou por lá três anos sem fazer progressos a não ser em matéria de cultura
geral – embora suponha que esta referência é irónica, é quase um erudito e tem
tendências hipermnésicas -, consciencialização política – suficientemente
profunda para nunca o levar a militância e animação urbana tanto quanto o
adjectivo se pudesse aplicar à cidade de Coimbra.
Em 63 passou
de Coimbra para Lisboa para fazer o que numa biografia à antiga se diria «abraçar
a sua verdadeira vocação». Começou a abraçá-la na ESBAL onde ficou até 68. Ano
da primeira exposição individual na Galeria Quadrante, em Lisboa. Era uma
figuração a que podiam servir referências: a arte e as outras coisas pop; o design gráfico (procure-se descobrir
alguns dos livros excelentemente ilustrados por Batarda); a banda desenhada.
Quer isto dizer que as cores eram vivas e bem contrastadas - «as cores da swinging London», para
onde Batarda partiria depois de três anos de tropa que lhe pareceram bastante
suficientes.
As figuras e
as suas supostas situações eram truculentas, ou insólitas, às vezes maldosas,
ou satíricas. A composição era por compartimentação, às vezes com painéis
compostos de vários quadros, como na banda desenhada.
Royal College
of Art, Londres 71/74. Na sequência da publicação, em 70, de um livro de que
Manuel de Brito guarda ainda alguns exemplares, Batarda trabalha com aguarelas.
O que lhe vale, a troco de originalidades, a sugestão, por alguns professores,
de passar da área de pintura para a de artes gráficas. Mas não houve maneira de
lhe explicar que o que fazia não era pintar, e acabaram por lhe dar prémios. Também
lhe criticaram as sobreposições de sentidos, os cortes de caminhos e de
leituras. Prefeririam imagens unívocas. Mas, ainda aí, não houve nada a fazer.
Os trabalhos
de Londres seriam expostos em 75, na Gulbenkian. Na apresentação dos trabalhos
de Londres, Batarda esclarece o sentido global da sua trajectória: «(...) é
deste cultivo das ambiguidades, e deste trabalho em que o elemento satirizador
assume – na quase total aparência – as formas de satirizado que (...) nasce
aquilo que considero relevante no meu trabalho. Mais ou menos aperfeiçoado com
o correr do tempo, aquele tornou-se mais óbvio e declaradamente um comentário
permanente ao estado actual das artes visuais (...) É porventura da aversão às
evidências, gerada pelos hábitos atrás descritos, que tem a sua origem à pista
fundamental – a minha, pelo menos – para a leitura destes quadros: nenhum deles
se mostra como a própria coisa. Trata-se de citações, de citações de citações,
e, indo por aí fora, de autocitações».
Aguarelas: a gestão das cores e complexidade da
composição
De 75 a 77, a
mudança de Lisboa para o Porto, e a correspondente crise de habitação,
afastam-no da prática da pintura. No final da década volta às aguarelas. São
agora menos figurativas, levando à fragmentação do espaço, à complexidade da
composição e detalhe do desenho, à gestão das cores, a extremos de minúcia e
perfeccionismo.
Os anos 80
vão corresponder a uma viragem na pintura de Batarda mas essa viragem vai, no
seu caso, num sentido oposto ao da evolução geral.
Pelo contrário,
nos anos 80, quando se recupera a figura, a cor, a referência gráfica, a
espontânea idade, a legibilidade, Batarda adopta um leque cromático
radicalmente mais austero, adensa e encobre a sua rede de citações e remissões
(alargada a toda a história da pintura), complexifica um jogo formal
tendencialmente abstracto (embora partindo de formas referenciáveis),
multiplica a espessura da eventual descodificação dos seus quadros.
A perfeição do fazer
A partir de
82 vem expondo com regularidade quase anual nas Galeria 111, Lisboa e Zen,
Porto. Uma série de exposições que foram demonstração da consistência de uma
linha de trabalho e de perfeito domínio dos meios – a que se costuma chamar
maestria. A consagração da autoridade de um autor. Mesmo que a braços com as
contemporâneas desventuras da noção de autoria.
A perfeição
do fazer entendida como perícia técnica é muitas vezes enaltecida no trabalho
de Eduardo Batarda. Que adverte contra uma valorização exagerada deste tópico. «Cada
coisa que é feita é produto de uma determinada intenção, e a maneira de atingir
essa coisa é a técnica que é preciso ter. Como tal, é evidente que eu reajo e
fico magoado na minha vaidade quando alguém põe em destaque o tempo que aquilo
demorou a fazer, ou que bem feito que está etc., porque em princípio aquilo não
deveria estar suficientemente bem feito senão para ser o que é. Agora se eu
estou a fazer uma paródia ou uma caricatura de uma coisa bem feita, uma troça
ligeira e até semi-nostálgica aos estilos, isso é talvez um segundo assunto.
Mas a técnica como técnica seria só isso, o bastante para que uma coisa pareça
o que parece e seja o que é. Como professor eu lido todos os dias com isso, e
peço constantemente situações e soluções completamente diferentes umas das
outras. Não há necessariamente uma técnica, há técnicas de fazer isto e de
fazer aquilo. E o que é péssima técnica num contexto pode ser excelente noutro».
Mais
fundamental que o apuro técnico poderá ser no trabalho de Eduardo Batarda a
inteligência das referências, agrupando nisto três coisas: a erudição de um
controlo minucioso da história das formas e dos modos; a hipersensibilidade às
marcas tipificadoras da actualidade de cada conjuntura plástica e aos ritmos e
variantes das suas oscilações; a omnipresente consciência da própria história
artística e pessoal do autor. Qualquer pintura de Eduardo Batarda pode ser
transformada num jogo de advinhas, numa decifração de indícios, em que se
trataria de recensear as referências à história de arte, à actualidade plástica
e à criação, subversão, composição, contraposição. Por fim, poderiam
distribuir-se-lhes qualificativos psicológicos desde a homenagem até à denúncia
passando pelo comentário e a ironia. Mas à medida que o formos sistematicamente
realizando veremos que se trata de um processo interminável. Todas a
referências sucessivamente se desdobram e com elas se desdobram também
sucessivamente as possibilidades de as valorizar e qualificar segundo esta ou
aquela categoria.
Eduardo Batarda. Reserva, 1988 |
O que se sabe e o que não se sabe
A
inteligência das referências começa por aparecer como construção de uma
gigantesco jogo de indícios proposto em desafio à capacidade de decifração do
observador. Mas, uma vez que esta decifração não se encerra num sentido final
ou leitura fechada, somos uma vez mais levados a reconhecer um valor profundo
de atitude.
Uma peculiar
vontade de omnisciência. Mostrar que se sabe aquilo que se sabe e que não se
sabe aquilo que não se sabe, que se sabem as formas sob as quais se deve ou não
se deve mostrá-lo, que se é capaz de antecipar sabedorias e as capacidades de
leituras dos observadores, de as cumular um pouco e decepcionar um pouco. «A
única coisa que eu não tenho obrigação de fazer mas talvez devesse ter, é a
antecipação, previsão do futuro....A outra coisa que eu não posso fazer é a
citação gratuita, pelo menos de há onze anos para cá. Tenho um entendimento,
suponho que cada vez mais distante, à força da preguiça, falta de tempo, da
chamada contemporaneidade. Mas ‘mantenho as minhas ligações’ e sigo atentamente
a minha época e ‘a sua carreira’ com o maior interesse. Não posso posar como
artista despretensioso que observa o mundo da sua tebaide ou do seu pequeno
local de província, nem como o gajo de Santa Fé, Novo México, que diz adeus
mundo, rivalidade, selva das artes, cá estou eu virado para o eterno nada, que
é a eterna natureza...A questão é que por hobby, de certo modo como coleccionar
coisas, deu-me há muitos anos a mania de olhar para as artes e para a história
de arte de uma maneira que é cada vez menos a maneira do ‘art-world’. E de passagem aproveito para lamentar o
fosso que se cava entre os académicos e os artísticos. Não sendo estudioso nem
investigador nem conhecedor (connaisseur) de nada, confesso que o peso das coisas
do passado tem para mim outro interesse. Talvez seja por isso inevitável que eu
apresente pistas ou restos que possam ter a ver com uma coisa que
episodicamente cruzou a trajectória de alguma arte contemporânea, aqui há
alguns anos, e que agora já não está outra vez a dar, ou seja, a história da
pintura e das tradições. Alguém tem de estar a fazer isso, neste impasse e
neste equívoco. Há centenas de milhar de pessoas que estão convencidas que
estão a fazer o novo quando estão a fazer o velho, mas têm que o fazer, porque
é sempre possível que aconteça que o equívoco seja ao contrário, que estejam a
fazer alguma coisa nova, certamente num contexto diferente em que o conceito de
novo também fosse diferente, mas que o contributo individual fora de
expressionismos e romantismos seja o pouco que se diz e o pouco que se
acrescenta.»
Um pouco mais
de abuso e Eduardo Batarda ficava com o perfil de um pintor romântico, não
apesar de si mesmo mas apesar de tudo. Um estilo apesar de tudo. «Coisa que se
calhar é uma vez do antigamente a dizer que apesar de tudo ninguém se safa
disto. Apesar de todos os didactismos, apesar de todos os basismos,
explicações, facilitações, às tantas é possível que se repare em alguém e se
defina toda a sua obra pelo seu estilo. »
As ideias são de factos o estilo.
...............................
Alexandre Melo, “Eduardo Batarda”, in Artes&Leilões, Lisboa, Junho-Setembro 1990, p.28-33.TÓPICOS DA INTERNACIONALIZAÇÃO
Artes&Leilões
Fevereiro - Março, 1990
Julião Sarmento, Mehr Licht, 1985, ©Tate |
O regime
ditatorial em Portugal correspondeu a uma época de isolamento em relação às
correntes que a nível internacional faziam a história da modernidade. Os casos
excepcionais de alguns artistas emigrados – por exemplo Vieira da Silva em
Paris ou, mais recentemente, Paula Rego em Londres – ou de alguns momentos de
ligeira abertura, não alteravam um contexto global retrógrado.
A revolução
de 1974 vem provocar, neste panorama, uma ruptura que dará lugar a uma nova
conjuntura cultural que possibilitará, nos anos 80, a emergência de uma nova
geração de artistas cuja afirmação é, hoje em dia, um facto consumado.
O processo de
abertura e internacionalização da situação artística portuguesa é ainda
limitado e embrionário. Não se pode comparar por exemplo com a explosão
internacionalista que se deu em Espanha nos últimos anos. O relativo fechamento
da situação portuguesa é consequência de múltiplo factores: uma rotina de
isolamento cultural herdada da ditadura; o conservadorismo e a falta de informação
das instituições culturais e da opinião pública; a reduzida dimensão do mercado
de arte; a falta de interesse dos poderes públicos pela política cultural; as
dificuldades económicas do país e as suas consequências ao nível do orçamento
em que a cultura nunca foi considerada prioritária.
Todos estes
factores constituem, por um lado, limitações à difusão dos artistas portugueses
no estrangeiro e dos artistas estrangeiros em Portugal. Nesta medida poderiam
constituir um elemento de atraso para a situação portuguesa. Mas, por outro
lado, este mesmo atraso comporta também aspectos positivos. Desencoraja o
exibicionismo espectacular e a precipitação demagógica. Neste sentido, o
referido atraso joga de uma maneira ambivalente e pode servir para preservar
uma duração e um ritmo mais adequados e uma maior consistência na relação quer
do público quer dos próprios artistas com as obras.
Embora admitindo o carácter embrionário
quer do mercado quer do processo de internacionalização da arte portuguesa
contemporânea, importa reconhecer que ao longo da última década, e sobretudo
nos últimos anos, se tem registado um crescente dinamismo.
Uma primeira
componente deste dinamismo foi o estabelecimento de relações com a Espanha e
designadamente a presença portuguesa na ARCO, Feira de Arte Contemporânea de
Madrid. A mútua ignorância cultural entre Portugal e Espanha, herança histórica
alimentada por nacionalismos anacrónicos e reactivos, foi ultrapassada, no
campo da arte contemporânea, através do estabelecimento de relações pessoais e
de trabalho entre artistas, galerias, publicações e críticos portugueses e
espanhóis. Miquel Barceló, José Maria Sicília, Cristina Iglesias, Juan Muñoz,
trabalharam e expuseram em Portugal em momentos iniciais ou ainda ascensionais
das suas carreiras. Julião Sarmento expõe regularmente em Espanha desde há anos
e mais recentemente há a registar individuais de Pedro Proença e Leonel Moura,
para além de múltiplas presenças em colectivas e da próxima realização, em
Barcelona e Sevilha, já este ano, das primeiras exposições significativas
dedicadas por instituições espanholas à arte portuguesa contemporânea.
Uma segunda
componente da embrionária internacionalização da situação portuguesa diz
respeito ao trabalho desenvolvido por artistas e galerias no sentido de
estabelecerem relações consistentes de trabalho a nível internacional. A Cómicos
teve, a este nível, um papel preponderante trazendo a Portugal, para trabalhar
e expor, artistas como Joseph Kosuth, Gilberto Zorio ou Gerhard Merz. A Módulo,
com Daniel Buren ou David Tremlett, também participou deste movimento. E novas
galerias começaram a trabalhar no mesmo sentido. A Atlântica (Porto), expondo
Juan Carlos Savater ou Rita McBride, a Galeria Pedro Oliveira (ex-Roma e Pavia,
Porto) com uma colectiva internacional ou a Galeria Graça Fonseca com uma
instalação de Eugénio Cano.
No sentido
inverso, importa referir que também artistas portugueses vão adquirindo ou
reforçando o reconhecimento internacional. Julião Sarmento, com exposições em
Madrid (Marga Paz), Munique (Bernd Kluser), Bruxelas (Xavier Hufkens) ou Turim
(Giorgio Persano), para só referir as mais recentes. Leonel Moura em Madrid
(Montenegro) ou Los Angeles (Meyers/Bloom). Ou ainda Cabrita Reis em Nova
Iorque (Bess Cutler).
Um outro pólo
de relacionamento internacional tem sido a MADE-IN, empresa de trabalho em
pedra, que vem desenvolvendo um trabalho de cooperação com escultores
americanos interessados em aproveitar a boa qualidade e disponibilidade da
pedra portuguesa. No contexto deste programa, apoiado pela Fundação Luso-Americana
– com muitas outras actuações positivas em matéria de abertura internacional –
já se deslocaram a Portugal, entre outros, Amy Yoes, Joel Fisher, Jean
Highstein e Matt Mullican.
Um último tópico
de internacionalização diz respeito às acções institucionais que deveriam
servir de apoio e suporte às iniciativas privadas. Produção, importação ou
exportação de grandes exposições de arte contemporânea; realização de colóquios,
conferências ou congéneres sobre o tema; criação de fundos de documentação
acessíveis ao público.
Já se conhece
a incapacidade financeira da Secretaria de Estado da Cultura, a incapacidade
cultural da Gulbenkian neste sector, a prolongada indefinição da Casa de
Serralves. Toda a gente já se perguntou porque é que as instituições
portuguesas fazem como se desconhecessem, e desconhecem, a arte dos últimos
vinte anos, porque é que nem sequer importaram exposições que nos últimos anos
desfilaram por Espanha, porque é que ainda não há um sítio público que receba
catálogos e revistas de arte contemporânea.
Há alguns
anos atrás estas lamentações e acusações tendiam a tomar forma dramática e
panfletária. Hoje em dia o dinamismo das iniciativas pessoais e de grupo
prefere reconhecer e apoiar esforços de reciclagem cultural – os Encontros Luso
Americanos, o Van Abbe ou a Exposição-Diálogo na Gulbenkian, por exemplo,
alguns colóquios na Gulbenkian ou em Serralves, ou as intenções da Lei do
Mecenato e da criação da Fundação de Serralves – e conviver civilizadamente com
a irreprimível tendência das instituições para a incompetência e a degenerescência
burocrática.
..................................
Alexandre Melo, “Tópicos da internacionalização”, In Artes & leilões, Lisboa, Fevereiro - Março 1990, p.29-31.
CONVERSA - MERCADO DA ARTE
Artes&Leilões
Outubro-Novembro, 1989
António Bacalhau - José Sousa Machado
Artes & Leilões – Na tua perspectiva como é que se
articula o conceito de mercado nacional com o de mercado internacional?
Alexandre Melo – O
problema da escala geográfica dos mercados é o problema das fronteiras
espaciais do reconhecimento de um determinado valor. É uma questão fulcral,
porque sempre que quisermos comparar preços e valores de obras de arte não
chegamos a nenhuma conclusão se não encontrarmos em linha de conta com a dimensão
geográfica. Isto é, por exemplo, um artista que só é famoso em Portugal, que não
tem sequer cotação fora do país, pode ter preços mais altos, aqui, do que um artista
cuja obra e a cotação são reconhecidas em todo o mundo. Há um mercado
internacional, hierarquizado, e há mercados regionais, nacionais ou não, também
eles hierarquizados e que podem ser mais ou menos autónomos em relação ao
mercado internacional.
A.L. – Em termos práticos, do ponto de vista dos
compradores, como é que o problema pode ser encarado?
A.M. – Há duas
atitudes possíveis. Numa perspectiva mais ambiciosa, mais dinâmica e
internacional, importa reforçar a articulação do mercado nacional com o mercado
internacional e impõe-se apostar nas obras com um horizonte de afirmação e um nível
de reconhecimento mais vasto. Numa perspectiva mais limitada e imobilista, é
também possível a atitude oposta. O comprador confina-se aos limites do seu
meio e opta pelas obras com as quais se identificam os círculos sociais em que
projecta a sua imagem e aspirações, sem se preocupar com o desfasamento em relação
à situação cultural mais global.
A.L. – Ouve-se frequentemente dizer que em Portugal se
vive ainda na pré-história do mercado da arte. Mas simultaneamente nos últimos
anos vem-se manifestando uma grande animação e entusiasmo no mercado. Será que
esta animação pode vir a revelar-se artificial e a gerar equívocos em termos de
qualidade?
A.M. – Há de facto
uma assinalável animação e dinamismo. Embora, quase tudo continue a passar-se a
uma escala bastante reduzida. A abertura ao confronto com o exterior e às tendências
mais actuais continua a ser limitado, embora esteja a aumentar, e o nível de
formação e de informação dos agentes culturais e da opinião pública, em relação
à arte contemporânea, continua a ser muito pobre.
Estas limitações,
ao conjugarem-se com uma procura muito dinâmica, podem produzir efeitos
negativos, designadamente uma degradação ao nível de qualidade de algumas das
obras oferecidas no mercado, ou um processo inflacionista descontrolado que faça
subir de forma imponderada os preços dos artistas mais consagrados. Mas não é
fatal que assim aconteça. À medida que aumenta a circulação e a informação o
risco de efeitos perversos diminui porque aumenta o leque de obras e cotações
dentro do qual se estabelecem as comparações. Mesmo para quem prefira valorizar
contextos locais, o aumento da informação, ao permitir multiplicar os
confrontos, contribui para moderar os aumentos especulativos e para aumentar o
nível de exigência de qualidade.
A.L. – A efectiva existência de um mercado de arte pressupõe
também que exista uma certa garantia e segurança do valor. Se alguém compra uma
obra a um determinado preço tem que ter a convicção de que salvo situações
excepcionais aquela obra vale o que custou quando eventualmente se dispuser a
vendê-la. Será que a situação portuguesa oferece esse tipo de segurança?
A.M. – É difícil generalizar a esse respeito porque tudo depende das características
concretas dos agentes envolvidos no processo, ou seja, no caso, os galeristas e
os coleccionadores. Em Portugal não há muitos galeristas profissionais mas há
alguns. Quando falo de galerista profissional, independentemente da filiação
estética e inserção social, refiro-me a alguém que assume e defende a obra dos
artistas que representa numa perspectiva de carreira a longo prazo e de promoção
estratégica. Isto pressupõe uma rede sólida de relações sociais e
institucionais a partir da qual se constitui um núcleo de coleccionadores. E
traduz-se num escrúpulo de gestão de preços, das compras e das vendas que
permite, salvo situações anormais, assegurar a cotação de um artista. Quanto
mais profissionais forem os galeristas, neste sentido, maior será a segurança.
Vendo agora a
questão pelo outro lado, pelo lado do coleccionador, é evidente que para que
existam galeristas profissionais é preciso que existam coleccionadores a sério.
Isto é, coleccionadores que têm uma ideia de colecção e uma perspectiva a longo
prazo. Que compreendam que a compra de uma obra é também uma tomada de posição
cultural e um ponto de vista sobre o trabalho de um artista e que isso lhes
cria responsabilidades em termos de coerência, continuidade e clareza de opções.
Não se trata
apenas de comprar e vender ao sabor das conveniências, do acaso ou do capricho.
À medida que se forem afirmando e distinguindo os galeristas profissionais e os
coleccionadores a sério, e em que eles forem servindo de ponto de referência
para o conjunto do mercado, irão diminuir os riscos de quedas ou quebras.
A.L. – Nessa perspectiva o galerista surge como uma espécie
de gestor de carreira do artista. Mas o que também parece acontecer, em
contraponto ao aumento do número de galerias, é a vontade manifestada por
muitos de preservar uma certa liberdade e de serem eles próprios a gerir as
suas carreiras sem assumirem compromissos com galerias.
A.M. – Cada artista
decide qual a forma de inserção social e económica que lhe interessa para o seu
trabalho. O meio artístico e o mercado comportam a existência e convivência de
diferentes modalidades. Penso no entanto que com a maior parte dos artista que
se preocupa em gerir as suas próprias carreiras, o que está em causa não é
tanto uma exigência abstracta de liberdade mas sim uma aguda consciência do que
entendem dever ser a difusão do seu trabalho e uma certa desconfiança em relação
à capacidade dos galeristas para a assegurar. Em muitos casos os artistas têm
um grau de informação estética e de consciência estratégica mais elevados que o
dos próprios galeristas. Nesse medida é normal que queiram intervir na gestão
da sua própria carreira. Penso que também aqui a situação se modificará se
aumentar o nível de profissionalismo dos galeristas.
A.L. – Será que em Portugal existe já uma nova geração de
coleccionadores englobando pessoas de rendimentos médios e motivadas para a
arte contemporânea?
A.M. – Naturalmente
não há informações exactas disponíveis até porque a tal animação do mercado é
um fenómeno recente. Julgo porém que em relação à arte contemporânea há dois
tipos de coleccionadores. Por um lado, coleccionadores com colecções iniciadas
há já vários anos, com um poder de compra mais forte, que por razões de
sensibilidade ou maior informação – nacional e, nalguns casos, também já
internacional – começaram a voltar as suas atenções para a arte contemporânea e
têm a possibilidade de constituir colecções consistentes nessa aérea. É um fenómeno
minoritário mas que poderá alargar-se a partir do momento em que comece a haver
um reconhecimento público generalizado da valia de escolhas que, porque mais
contemporâneas, tendem ainda a aparecer, aos olhos do coleccionador
tradicional, como demasiado arriscadas. Por outro lado, há uma vaga mais
recente de coleccionadores que começaram a comprar ao mesmo tempo que os
artistas, cujas obras adquirem começaram a expor e que por assim dizer
acompanham, também em termos de cumplicidade estética e cultural, a evolução
das suas carreiras. São pessoas que não têm um poder de compra muito elevado
mas que têm um papel fundamental enquanto base social e cultural de apoio e
enquanto germe de uma futura geração de coleccionadores mais informada e mais
sintonizada com a criação contemporânea.
A.L. – Ainda no âmbito das colecções e coleccionadores,
qual é ou deveria ser a situação, em Portugal, no que diz respeito aos
coleccionadores institucionais, seja o estado as fundações ou outras entidades?
A.M. – Uma resposta
exacta exigiria uma análise caso a caso. Generalizando, diria que em primeiro
lugar, o número de coleccionadores institucionais importantes, quer em termos
de montante de compras quer em termos de prestígio cultural, é bastante
reduzido. A situação alterar-se-á à medida que as instituições, públicas ou
privadas, forem compreendendo até que ponto a dimensão cultural é importante
para a valorização e articulação social das suas actividades. Em segundo lugar,
quase todas as colecções institucionais – a recente colecção da Fundação
Luso-Americana é talvez a única excepção – sofrem de dois defeitos: a falta de
uma ideia ou critério estruturador, e a falta de uma perspectiva de longo prazo
com a consequente ausência de regularidade c continuidade de aquisições. Estas
faltas acarretam dois tipos de inconvenientes. Por um lado determinam um tipo
de intervenção casuística, aos repelões, com um timing arbitrário e uma lógica imprevisível. Por outro lado
inspiram uma abrangência sem limites ou um ecletismo sem princípios que acabam
por transformar as supostas colecções em aglomerados heteróclitos de peças cuja
reunião não tem maneira de fazer sentido. Esta situação é tanto mais grave
quanto as colecções institucionais, pelo seu peso económico e visibilidade,
deveriam constituir um exemplo para o mercado no seu conjunto. Se na diversidade
das suas opções estéticas e culturais as instituições em causa adoptassem para
as suas colecções uma ideia, um conceito, um critério, uma perspectiva estratégica,
em tudo a sua acção poderia ser muito importante para a construção e
amadurecimento do mercado da arte em Portugal.
A.L. – Todo este conjunto de insuficiências e limitações
que temos vindo a apontar aos coleccionadores portugueses, e que estão muito
relacionados com a falta de informação, não poderão levar à formação de colecções
que sejam autênticos “elefantes brancos”?
A.M. – Existem de factos supostas colecções que não se podem mostrar fora do círculo
familiar e ainda outras colecções que com o passar do tempo vão descobrindo que
nunca o foram. Esta situação está relacionada com um fenómeno assaz chocante
que é a massiva falta de informação sobre a arte contemporânea. Mesmo sem falar
da inexistência de grandes ou pequenas exposições, retrospectivas ou de
actualidade. Não existe sequer um centro de documentação, uma biblioteca ou uma
livraria – já não digo mais que uma – onde se tenha acesso de forma minimamente
sistemática e actualizada a livros, catálogos ou publicações periódicas sobre
arte contemporânea. Este deserto tem consequências não tanto ao nível do meio
artístico propriamente dito – que, por vias internacionais, tem acesso à mesma
informação que o meio artístico de qualquer outro país – mas sobretudo ao nível
da opinião pública em geral e da investigação sobre arte contemporânea. Esta é,
em termos práticos, impossível em Portugal, por falta de tudo. Quanto à opinião
pública média o problema que se põe não é já o de se identificar ou não mas o
de virtualmente não ter qualquer ideia ou imagem do que se passou no últimos 30
anos no campo das artes plásticas.
A.L. – Haverá a possibilidade de no mercado de arte em
Portugal, a breve prazo, se vir a dar uma queda, um crash, semelhante ao que
ocorreu no princípio da década de 70?
A.M. – Julgo que,
apesar de todos os problemas e limitações de que viemos falando, existem agora
mais elementos moderadores e parâmetros de referência mais sólidos do que
existiam nessa altura. O grau de profissionalismo dos vários agentes envolvidos
é apesar de tudo mais elevado e não creio que as manobras especulativas possam
atingir uma dimensão catastrófica. Poderá haver altos e baixos, aumentos ou
quebras da procura, dependentes das oscilações de conjectura económica mas não
se me afigura que, até ver, o mercado da arte esteja a alimentar em si mesmo
factores ou dinâmicas autodestrutivas. Por outro lado podemos também considerar
que uma ligeira recensão ou uma quebra da euforia – se é que se pode falar de
euforia, parece-me um pouco exagerado – podem também ter um efeito regulador,
moderador, selectivo. Permitindo distinguir entre o profissionalismo e o trabalho
sólido e facilidade inconsequente de quem aproveita os bons momentos para
empolar operações especulativas.
A.L. – Sempre que se fala das relações entre e a arte e
economia, de mercado da arte, surgem acusações relativas à massificação da relação
com as obras de arte e da sua consequente banalização e de valorização em
termos de sentido e de relação profunda com o observador. Será que este
processo é inevitável?
A.M. – Actualmente
existe uma crescente integração da criação artística na lógica económica mais
geral das sociedades, o que implica uma certa mercantilização, mediatização e
massificação da circulação e da distribuição das obras de arte. Mas isso não
impede que continuem a ser possíveis diferentes tipos de relacionamento. Se eu
faço uma viagem de 15 dias ao estrangeiro e aproveito para visitar seis exposições
ou museus, por dia em 12 cidades diferentes é natural que no meu regresso tenha
um sentimento de massificação e que me queixe de uma quebra da intensidade da
minha relação com cada uma das obras que olhei. Mas ninguém me obriga a fazer
isso. Posso dedicar o mesmo tempo a ver apenas uma exposição ou até apenas uma
obra. A escolha é sempre do observador e os diferentes tipos e níveis de
relacionamento não são sequer incompatíveis. Tudo depende, em cada situação, do
objectivo e da modalidade de atenção.
............................
"Mercado da arte : Conversa com Alexandre Melo". in Artes & leilões, Lisboa, Out.-Nov. 1989, p.12-16
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