Jon Routson. Bootleg (Cremaster 4). 2002
O caso que
hoje apresento é muito especial e a palavra caso vale quer na acepção estética
quer judicial. Jon Routson nasceu em Washington, em 1969, vive e trabalha em
Baltimore e está em princípio de carreira. Não sei se virá a ser um artista
famoso, nem sei se os leitores estarão dispostos a considerá-lo um artista –
excepto no sentido que às vezes se dá a palavra «artista» quando se admoesta um jovem mal comportado.
Passemos à
apresentação do caso, tal como ele se nos depara na sua segunda exposição
individual na galeria Team, em Chelsea, Nova Iorque. Jon Routson foi ao cinema
com uma câmara de vídeo escondida, filmou na íntegra, a partir do seu ponto de
vista, um conjunto, actualizado ao longo da exposição, de filmes em exibição
nas salas de cinema, e apresentou nas paredes da galeria de arte os filmes tal
como os filmou, com ruídos, interferências e distorções de perspectiva.
«Bootlegs» de, entre outros, Chicago,
Cidade de Deus, Femme Fatale ou Spum.
A questão
mais geral diz respeito ao estatuto artístico dos filmes e à atribuição da sua
autoria. Saber se ou quando é que um filme é uma obra de arte e quem é que pode
ou deve ser considerado o seu autor é uma questão que permanece em aberto e
suponho que tenderá a abrir cada vez mais. Podemos estar perante um problema
legal que não deverá chegar a eclodir dada a pequena escala comercial da
galeria. A questão torna-se mais aliciante se analisada em termos de trabalho
do imaginário.
Ao longo do
século XX e, desde logo, de forma gloriosa, nos anos 20, a sala de cinema
tornou-se a grande sala dos sonhos que embalaram a imaginação dos cidadãos do
mundo do século passado. Uma espécie de actualização das igrejas onde os
devotos absorviam as imagens das figuras com que depois organizavam as suas
fantasias e padrões morais. Os santos, tal como as «stars», para além de
brilharem na sala dos sonhos, também tinham de funcionar na casa e na cabeça de
cada um.
Se aceitarmos
que as imagens dos filmes – e depois as da televisão – são as principais
matérias-primas do trabalho do nosso imaginário percebemos que o modo de lidar
com elas seja um problema relevante para os artistas plásticos contemporâneos.
A sala de
cinema pode ser comparada com a igreja na sua função de sensibilização do imaginário
de massas, mas há uma dimensão religiosa mais austera e rarefeita – que alguns
dizem sagrada – que a massiva democracia cinéfila não favorece e que muitos
entendem ter sido assumida, em termos culturais, no mundo moderno, por essa
outra sala dos sonhos que seria a sala da exposição.
Como é que
olhamos para as imagens com que fazemos sonhos? Que poder é que lhe queremos
dar? Como é que queremos viver com elas? Há muitas hipóteses: a comemoração
pública com popcorn e coca cola; ou a indiferença doméstica em pano de fundo do
jantar; ou a veneração inerente à atenção que dedicamos às obras de arte; ou
ainda o simples e radical gesto subversivo da apropriação e reprodução pirata.
O artista
estende a sua lógica subversiva ao campo da arte e da televisão, quando num
movimento inverso ao descrito, remonta o filme Cremaster 4 do artista plástico consagrado Matthew Barney numa
versão-pirata que apresenta num televisor, sobrepondo-lhe o logótipo e
segmentos de publicidade e informação da cadeia de televisão ABC.
O apropriamento artístico de Routson serve de
exemplo literal da lógica, mais ou menos consciente, de reapropriação
subjectiva e reciclagem de imagens em que assenta todo o trabalho de
imaginação. Como qualquer pirata sabe, desde Douglas Fairbanks, desde a mais
tenra idade, o que importa é partir à conquista dos tesouros.
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Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 25 de Abril 2003, p. 38
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