Steve McQueen, Western Deep, 2002
Western Deep é um filme.
O autor é um artista plástico e o filme pode ser visto no Museu de Arte
Contemporânea, em Serralves. As artes plásticas, hoje, graças ao alargamento
infinito das formas de expressão que acolhem no seu território tornaram-se,
talvez, o mais avançado campo de invenção estética e conceptual mesmo no que
diz respeito a processos que, em termos técnicos, remetem para outras
disciplinas.
Por exemplo,
um filme tão extraordinário quanto Western
Deep, sendo, em termos técnicos, cinema, não cabe, de modo algum, nos
limites daquilo a que nos habituámos a chamar cinema, seja o cinema normal
(modelo narrativo tradicional), seja o documentário cinematográfico.
Steve McQueen
nasceu em Londres em 1969. Os pais nasceram em Grenada (Caraíbas). McQueen
estudou na Chelsea School of Art e no Goldsmith em Londres e na NYU (New York
University). O seu trabalho consiste em filmes com um leque de referências que
vai desde o cinema mudo até ao cinema estrutural dos anos 60. Uma das suas
obras mais famosas, Deadpan (1997), é
inspirada na cena de Steamboat Bill Jr (1928)
em que a fachada de uma casa desaba sobre um impassível Buster Keaton. Uma
outra das suas obras mais celebradas, e talvez mais sensual, Bear (1993), também apresentada em
Serralves, faz pensar em Raging Bull (Martin
Scorsese). McQueen expõe regularmente na Europa e nos Estados Unidos desde
1997. A consagração veio com o Turner Prize, um dos mais famosos prémios da
actualidade, em 1999 e, já agora, com a concessão da Ordem do Império Britânico,
em 2002.
Filmado à mão
com uma câmara super-8, Western Deep
arrasta-nos para uma descida ao fundo de uma das minas de ouro mais profundas
do mundo, em Joanesburgo. O ponto de vista corresponde ao que poderá ser o de
um mineiro. Ponto de vista é, aliás, uma expressão injustamente restritiva já
que o som e as solicitações do tacto ou do olfacto são tão irresistíveis quanto
as imagens. A violência dos ruídos explode diante de um «écran» cuja escuridão rasgada de flashes de
luz ou súbitas visões de texturas agrestes nos deixa perdidos, desorientados,
siderados. Até ao momento em que as imagens dos mineiros nas salas em que se
preparam ou descansam depois do trabalho nos permite organizar um princípio de
contextualização da sequência das imagens.
Mas mesmo aí,
perante a presença iminente dos rostos e corpos do mineiros, há uma proximidade
física - um excesso de presença em
estado bruto – que nos impede de elaborar qualquer justificação psicológica
pacificadora e nos atira de novo, uma e outra vez, para o confronto directo com
a espessura do suor, o grão da pedra, o vermelho da sirene, a cor da pele, o
verde dourado dos reflexos, o eco do fôlego, a falta de adjectivos para falar
de olhares ou lábios entreabertos. Estamos perante um excesso de real, um
excesso de proximidade, que desautoriza os protocolos do realismo convencional
ou da denúncia política estereotipada, e nos convoca vivos para nos obrigar a
inventar uma razão de ser capaz de sustentar o confronto com a realidade da
experiência do próprio filme. O olhar e o corpo de cada um de nós tem que ser
capaz de suportar o desafio de uma viagem cujo destino é a humaníssima
descoberta do negro coração do ouro.
...................................
Alexandre Melo, Crónica ‘Obra de Arte’, in Expresso, Lisboa, 29 de Março 2003, p.
34.
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